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sábado, 3 de outubro de 2015

a tale about tone and effect, ou por que não conseguimos levantar a voz

Estava eu em um evento sobre mulheres na área de tecnologia, mais especificamente uma mesa redonda em que três mulheres, formadas, especializadas e experientes em suas respectivas áreas em TI, inclusive uma professora, falavam sobre suas experiências pessoais com o preconceito no mercado de trabalho por ser mulher.

Só pra dar uma dimensão maior da coisa, esse era um evento sobre tecnologia com um auditório cheio em que a maioria das pessoas eram mulheres, e todo mundo muito jovem, e todo mundo compartilhando experiências e tal. Foi tudo muito legal (exceto essa parte sobre a qual eu vou falar), mas passou a manhã, passou a tarde, passou muito material customizado com Rose the Riveter e eu estranhei que em nenhum momento ninguém sequer mencionou a palavra feminismo. Save that for later.

Pois muito bem. No meio dessa mesa redonda, um ser humano pega e levanta a mão pra fazer uma pergunta. O elemento - professor de não me lembro qual campus do IFCE, só pra piorar as coisas -, no meio de um evento organizado por mulheres, para mulheres, num auditório em que só tem um punhado de homens, tem o desplante de dizer que como ele nunca na vida percebeu mulheres sendo tratadas injustamente na área de TI especificamente por serem mulheres, então as experiências que estavam sendo relatadas ali - e, por consequência, toda a razão do evento existir in the first place - eram experiências “pontuais”, que não podem ser generalizadas, e que aconteciam não por causa de preconceito, mas por causa da imaturidade das pessoas com quem elas trabalhavam.


Não é como se não fosse de se esperar que alguém dissesse algo do tipo. Eu muito inocentemente pensei que, dados a natureza e os números do evento, ele ia ouvir umas verdades, mas não. Claro que não. Elas responderam e tal, e no final disseram que não se declaram feministas (olha a palavra aí, finalmente).

Em algum momento lá das palestras apareceu um dado cujo número exato eu não sabia: a evasão de mulheres de cursos na área de TI chega a 79% no primeiro semestre. 79%. No primeiro semestre. Mas claro que deve ser um problema pontual.

Eu estudei na área de TI por oito anos, trabalho na mesma área há quatro, e eu cansei muito e muito rápido, porque não existia incentivo, porque não valia a pena. Tem gente que até hoje me diz pra terminar a engenharia, mas eu penso aqui com meus botões, será que cê tem noção mesmo de como é difícil? Foda-se a Física, é por causa do ambiente mesmo. Agora por último eu tenho visto iniciativas como essa que buscam incentivar a entrada e, tão importante quanto ou até mais do que isso, a permanência de mulheres em TI, mas um tempo atrás eu não via nada disso acontecer. Eu sei hoje o quão importante é você, sendo mulher, entrar numa área dominada por homens - tomada das mulheres, diga-se de passagem - e ter incentivo pra continuar lá, ter exemplos em quem você pode se espelhar e ver que não é impossível, sobreviver aos quatro, cinco, dez anos em aula após aula sendo silenciada e ignorada. Pela minha experiência, chega uma hora em que você realiza que você é apenas parte da paisagem, uma planta que fica ali no canto. 

Aí vem o discurso com aquele tom de it gets better, tão comum em palestras motivacionais. Não acho que seja completamente inútil ou errado; é verdade que a gente tem que perseverar e, como eu falei antes, é imprescindível que a gente tenha como ver que é possível, que alguém já foi lá e fez antes, mas acho tão perigoso quando o discurso acaba aí. Porque quando ele acaba aí, você acaba validando a teoria do professor lá do começo do post, que acha que machismo é azar de quem conviveu com gente imatura.

É verdade que a gente tem trabalhar duro, mas é verdade também que isso não é o suficiente. Homens tendem a falar esse tipo de coisas em espaços para mulheres, primariamente porque, bem, eles realmente não veem acontecer. Eles não estão programados pra perceber; só pra reproduzir. Você não saber de algo que você não experiencia é uma coisa, você se achar no direito de calar aqueles que passam por esse algo é outra. A pessoa se apresenta como professor, num auditório cheio de gente jovem, cita umas três empresas grandes onde ele trabalhou e fala que como ele nunca percebeu machismo, então claramente machismo não existe na escala em que se estava falando. O fato de ele fazer essa inferência não é pontual, não é um defeito na lógica dele; faz parte da estrutura também. É o fato de o machismo ser estrutural e ser tão arraigado na sociedade que permite que a lógica dele funcione desse jeito; é o que permite que a evasão seja tão grande, que os salários sejam diferentes, que seja tão difícil arrumar trabalho. Nenhuma dessas coisas está separada da outra.

É engraçado, daquele jeito triste que as coisas são, que seja tão difícil levantar a voz numa situação dessas. Não digo no sentido de gritar, mas de protagonismo. Mesmo estando em menor número, mesmo rodeado de mulheres dividindo suas experiências, o efeito mais comum que acontece quando um homem invalida mulheres desse jeito é tentar amenizar a situação. Dizer que não se trata de feminismo, que não se trata de segregação (é sério, teve isso), que os homens são bem-vindos e que precisamos de todo o apoio.

Isso é algo que eu demorei a entender também, mas veja só: não são bem-vindos, não. Existe um motivo pra essa amenizada toda acontecer, o mesmo motivo pelo qual existem as piadas, pelo qual professor não avalia mulheres do mesmo modo, o mesmo motivo pelo qual mulheres têm que trabalhar muito mais pra tentar chegar no mesmo nível de respeito de um homem na mesma área, talvez até com pior qualificação: é machismo, cara. Eu sei que é um jeito de conseguir mais espaço de manobra, eu sei que é comum até demais quando está se tentando estabelecer uma comunicação, porque infelizmente quem não tem poder não consegue sair muito do lugar se não existe apoio daqueles que têm, mas olha. A gente não devia ter que ficar alisando ego de homem pra ser levado a sério. Não devia. E isso leva tempo pra entender, mais tempo ainda pra botar em prática, mas se tem uma coisa que eu queria conseguir passar é isso, que a gente não tem obrigação de bater palma pra homem.

Outro dia, na aula, um rapaz perguntou porque as amigas feministas dele diziam que ele não podia ser feminista, que ele ficava muito triste por isso porque, bem, ele era feminista. É a questão do protagonismo all over again. Homem quer se mostrar feminista pra ganhar estrelinha, mas não quer pra levar o problema pra onde ele pode, de fato, fazer alguma diferença. Seu papel enquanto homem é mostrar a outros homens o que tá errado e o que pode mudar, não falar por cima das vozes de mulheres. Por que é tão difícil, meu deus? 

Tem uma rotina na natação em que a gente nada três braçadas pra frente e depois volta duas de costas. O perigo desse discurso de que a chave pra libertação do machismo é o mérito pessoal é que os homens podem sentar e continuar de boinha, sem nunca precisar mexer uma palha pra mudar suas próprias ações, porque a responsabilidade do sucesso fica nas mãos de quem se prejudica. Como se não houvesse uma estrutura toda por trás se encarregando de dar as duas braçadas de costas. 

Curiosamente, eu lembro de ter falado sobre isso com um amigo no começo do ano, quando houve uma palestra na Semana de Letras, eu acho. Era uma fala sobre preconceito na universidade e tal, e a gente tava discutindo justamente sobre como o tom da fala era bem aquele it-gets-better kinda thing, onde a responsabilidade de ser oprimido ou não é sua, onde você é incentivado a esperar que um dia melhora, um dia passa, a gente só precisa ser forte e não desistir. Mas se fala em melhorar as condições? Se fala em punir abuso, em conscientizar os alunos, em fazer mudanças no currículo e incluir questões de gênero, raça, sexualidade? Não, né. Só espera aí e estuda bastante que um dia passa. 

Não é justo, sabe?