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sexta-feira, 24 de outubro de 2014

fandom e literatura

(ou "quando a arte não é arte")¹


Quem escreve fanfic provavelmente já deve ter ouvido (ou lido) que fazer isso é perda de tempo. Principalmente se você tem alguma intenção de escrever trabalhos ~originais~ (ou seja, não baseados em alguma obra pré-existente) e publicá-los. O argumento é que perder tempo escrevendo histórias sobre personagens ou universos que nem seus são toma o tempo precioso que deveria estar sendo dedicado a escrever um livro de verdade.
O meu argumento, no entanto, é que quem diz isso nunca leu uma fic boa na vida e/ou nunca escreveu.
Acredito que escrever nunca é perda de tempo. Eu posso não passar 24h por dia trabalhando na obra máxima da minha vida, mas cada coisa que eu escrevo (até esse post!) contribui para que eu escreva cada vez melhor. Sei disso porque passei literalmente metade da minha vida escrevendo e vi não apenas o meu progresso, mas também o das pessoas que conheci pelo caminho e que também escreviam como eu. Quem escreve fanfic geralmente começa muito cedo, sem saber de praticamente nada. Vamos escrevendo por diversão e vamos lendo e amadurecendo essa escrita.
Digo que a pessoa hipotética do começo do post nunca escreveu porque pra subestimar o trabalho de ficwriter a pessoa certamente não tem noção da dedicação que se coloca nele. O fato de que você está escrevendo sobre personagens de outro autor não necessariamente significa que isso torna tudo mais fácil; fanfic quase sempre acaba requerendo que você seja capaz de analisar esses mesmos personagens muito mais profundamente do que se esperaria de outro tipo de leitura. Ler para escrever vai além de receber e interpretar a informação que está ali disponível no livro apenas com o objetivo de entender a história; eu não quero apenas entender a história, eu quero meios de destrinchar aquilo e fazer algum detalhe diferente. Sem falar que pesquisa tem que existir de qualquer forma, seja fanfic ou não.
Fanfics naturalmente não costumam ser publicadas porque, bem, os personagens pertencem a outros autores, mas cada vez mais há pessoas que publicam o que antes já foi fanfic, mas adaptada para personagens criados por elas mesmas (não, não me refiro apenas a Twilight).
A pessoa hipotética do começo do post possivelmente também não se lembra da quantidade de fanwork da Bíblia que existe no mundo (Michelangelo, anyone? O evangelho segundo Jesus Cristo, de Saramago?). De qualquer obra, na verdade. Histórias sobre os deuses gregos. O Conde de Monte Cristo, Os Miseráveis; musicais, filmes, poesia… interpretações e referências a obras pré-existentes existem há muito, muito tempo. Por que algumas são literatura, arte, e outras não?
Cânone, né amgs. Cânone pode.
Cânone também é conhecido como as obras escritas por homens brancos hetero ao longo de centenas de anos, que têm o desplante de crer até hoje que o que escrevem é universal. Universal pra quem, eu me pergunto, porque para ao menos metade da população certamente não é. Escrevem bem, a história é massa? Certamente. Representam tudo o que creem que representa? Não.
[Da série Coisas que Ouço na Aula, Não Necessariamente dos Professores, mas que são Igualmente Assustadoras: livros escritos por autores queer, mulheres, minorias raciais ou outras minorias sociais de modo geral “não são literatura” porque “distorcem o cânone” e “não são universais”. Porque se você escreve sobre a sua realidade e a sua realidade não é a de um homem branco ocidental cristão cis e hetero (em qualquer ordem, mas cuidado pra não errar nas proporções), então você só tá escrevendo pra “fazer política” e “não é arte de verdade”.]   
O texto que eu tinha mencionado no post anterior é esse aqui, e o trecho que me interessou mais pra o que estou falando é o seguinte (grifo meu):
(...) 45,5% das histórias postadas no Archive são M/M (i.e. slash), enquanto 24,3% são classificadas como “Gen” (i.e. sem romance), 20,2% são F/M, enquanto F/F toma apenas uma pequena parte do gráfico. (Mais recentemente, o mesmo usuário postou mais estatísticas sobre a composição do Archive; os vinte e quatro pares mais populares são todos M/M, e apenas onze dos primeiros cinquenta e um são M/F [Nenhum era F/F]). Embora outros arquivos sejam um pouco menos homogêneos - Fanfiction.net, o site mais popular de fanfics, hospeda números enormes de histórias sobre Star Wars, Piratas do Caribe e Jogos Vorazes, pra citar alguns, além dos esperados clássicos slash como Supernatural e Sherlock - o Archive of Our Own, no entanto, representa um subconjunto importante do fandom, e é notavelmente mais acolhedor em relação a conteúdo sexualmente explícito do que o Fanfiction.net, que não aceita histórias com conteúdo explícito.
Quem vê de fora fica perplexo com a popularidade de fic slash entre mulheres, mesmo que essa pessoa não tenha sido apresentada à verdade fria e dura dos números, já que a reputação (precisa) do fandom é de uma comunidade primariamente feminina. Embora não haja, é claro, estatísticas sobre exatamente quão poucos homens participam do fandom, eles certamente são uma minoria. Embora fandom e fanfiction sejam tecnicamente públicos - mais uma vez, você pode achar qualquer coisa no Google e, para citar um filme que de outro modo não gosto muito, “Na internet não se escreve a lápis, Mark, ela se escreve a caneta” - os espaços do fandom dão uma ilusão de privacidade, de um tipo de comunidade fechada que não é exatamente fechada, mas simplesmente não é do interesse daqueles que não a conhecem. Da mesma maneira que, centenas de anos atrás, muitas mulheres escreviam extensamente mas tipicamente apenas para circulação privada entre amigas e conhecidas, fanfiction é parte de uma troca cultura comunal, informal, que funciona não como um empreendimento capitalista, mas como um tipo de enonomia de doação: eu vou escrever essa história pra você, uma escritora de fanfic pode dizer, enviando para a amiga trechos de prosa; me escreve algo em troca.  
A criatividade comunitária do fandom pode enriquecer as almas de jovens mulheres ao redor do mundo - de modo nenhum uma conquista insignificante - mas enquanto isso está acontecendo, todos os tristes jovens escritores que certamente olhariam para a cultura do fandom e fanfiction com desdém estão ocupados escrevendo romances que um dia serão enviados para editores e aparecerão nas vitrines de livrarias independentes. Esses tristes jovens escritores são Jonathan Franzens em treinamento, e eu provavelmente os acharei igualmente intoleráveis, mas eles entrarão na cultura literária mainstream muito mais rápido que meninas e mulheres que estão enviando enviando histórias umas pras outras online, e serão capazes de viver da sua escrita, ao menos em parte, o que uma jovem escritora de fanfic nunca conseguirá fazer.
Fanfiction é apenas mais um exemplo dos padrões duplos que vivemos. Eu fico muito feliz de ver o fandom sendo estudado e, principalmente, descrito; fandom é uma cultura majoritariamente feminina, criado e mantido por mulheres, e que por esse mesmo motivo é visto menos seriamente, mesmo em comparação com manifestações similares vindas de homens.
Eu ainda tenho tanto a dizer sobre fandom e provavelmente não me articulei direito nesses posts, mas queria terminar trazendo a tradução de algo que foi dito pela Euclase alguns dias atrás. Euclase é uma grande fanartist que produz principalmente arte sobre Supernatural, e alguns outros fandoms também. Como o estilo dela é hiperrealista, volta e meia alguém pergunta por que ela desenha personagens fictícios quando poderia estar fazendo arte ~de verdade~. 
Acho que o conceito de atração e beleza é fascinante (e meio que incrivelmente perturbador), especialmente quando se aplica a meninas e como a imagem de meninas é vendida. Meninas são ensinadas, basicamente desde muito pequenas, que não somos boas o suficiente. Não somos atraentes o suficiente. Corporações inteiras foram construídas ao redor do conceito de fazer mulheres se sentirem mal sobre si mesmas.
Se você quer que um homem compre um carro, você reafirma que é incrível e merece coisas incríveis para combinar com a sua incrível masculinidade. Para as mulheres é dito exatamente o contrário. Não importamos nossa aparência, ou como nossos corpos são - devemos ser mudadas. Somos criadas para acreditar que já começamos a vida com defeitos. E, mais perturbador ainda, somos criadas para nos vermos do jeito que os homens nos veem.
Fan art feita por meninas, na minha opinião, é uma coisa muito importante. Não é convencional, obviamente. Não é comumente aceita como arte legítima, ou mesmo qualquer arte, em parte porque são personagens com copyright, mas em parte também porque derruba a noção de que homens devem ter opinião sobre a aparência das mulheres. É um modo pelo qual meninas podem reinvidicar autoridade sobre seus próprios olhares. Fan art é como meninas dizem “Eu quero olhar pra isso e apreciar isso por mim mesma, e eu quero fazer isso com outras meninas”.
Mas é mais do que isso. Porque há muitas coisas que são comercializadas para meninas. Playgirl e Viva. A revista Glamour. Talk shows. Obviamente há muitas coisas comercializadas para meninas que satisfazem o olhar feminino.
Mas fan art, junto com fanfiction, é uma das poucas coisas em que o conteúdo, que era originalmente comercializado para o mainstream (por homens e para homens - e especificamente homens brancos hetero) está sendo reinvidicado por mulheres. O que acontece é uma mudança de poder. O que uma vez pertenceu aos homens tem sido reinventado por mulheres, celebrado por mulheres, e compartilhado entre mulheres.
(...) Sei que muitas pessoas dizem, especialmente sobre minhas coisas, “Bem, isso é só copiar fotos, até mesmo pra fan art. Não é original. Você não está reinventando nada se está apenas desenhando um retrato.”
E isso foge totalmente do ponto. Porque eu passo tempo com aquilo que acho que é atraente, seja esteticamente ou emocionalmente interessante ou qualquer coisa, e esse é o meu tempo. Ninguém mais tem a ver com isso. É como comprar um produto sem comprar toda a porcaria da mensagem invalidante que vem com ele.
E é por isso que fan art importa tanto pra mim. Eu fiz de mim a soberana do meu próprio olhar.

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¹ peço encarecidamente que vocês leiam isso aqui e depois se perguntem se é arte ou não.

fandom, representação e etc

Eu estava querendo escrever sobre fanfiction e fandom há uns duzentos anos, e acabei topando com um post que toca em alguns dos assuntos que eu queria mencionar. Ia traduzir e postar ele completo aqui mas a) me alonguei demais nesse post, b) acabei escrevendo outro também e c) decidi usar só uns trechos do post traduzido. Ou seja, tem mais um post sobre fandom depois desse aqui. Enfim.

O que cargas d’água isso tem a ver com feminismo, você se pergunta (ou não). Um monte, eu respondo, por motivos que vão ficar mais claros no texto que traduzi e, num nível mais pessoal, pela minha própria experiência nos fandoms da vida. O conceito de fandom é muito simples: imagine que existe uma obra de ficção e as pessoas que gostam dessa obra. Essas pessoas conversam entre si sobre essa obra, elas gostam de discutir, de teorizar, de escrever e ler sobre ela, de desenhar, qualquer coisa. Eis aí um fandom.

O primeiro fandom em que eu me envolvi foi o de Harry Potter, mais especificamente em 2003, que foi quando li uma fic pela primeira vez. Na época, o quinto livro tinha acabado de sair, havia milhões de teorias na internet, sites dedicados a discutir os filmes, os livros, tudo. Tudo ainda estava em produção, tudo era expectativa. Comecei a escrever nessa época também, e obviamente era um negócio horroroso, mas isso também significa que faz onze anos que escrevo quase que ininterruptamente. Deu tempo de dar uma melhorada.

A produção em cima de obras de ficção (fanfic, fanart, fanvids etc) me fascina por isso; ela não pede nada em troca. Eu, e basicamente todas as pessoas que começaram a escrever em um fandom, fizemos isso porque gostamos de alguma coisa que lemos ou assistimos e deu vontade de escrever. Fazemos - e olha só que maravilha - porque queremos mudar alguma coisa, porque aquela obra nos falha em algum aspecto (representação manda beijos). Fanwork é o meu exemplo favorito de subversão de padrões; uma obra não se esgota dentro de um fandom. Eu comecei a escrever porque era divertido, porque eu gostava dos livros, e tenho escrito desde então. Não tenho a menor dúvida de que, se o que eu escrevo hoje em dia é bom de algum forma, é porque eu escrevo fic.

Passei tempo o suficiente no fandom de HP pra ver a mudança de formatos e de público ir acontecendo. Os sites já não são mais os mesmos, as formas de comunicação também não. Se você já participou de algum fórum, deve ter visto que geralmente se separam os assuntos principais em seções e tem alguma seção separada pra assuntos gerais, como outros livros, cinema, amenidades, etc. Quanto mais tempo se passava nos fóruns de HP, mais eu os vi sendo absorvidos pelas seções mais gerais, pra onde os usuários mais antigos iam migrando e passando mais tempo, e as seções específicas sobre a obra em si sempre têm um influxo maior de leitores mais novos. Foi nessa comunidade de pessoas completamente diferentes unidas por um gosto em comum (que de comum só tem mesmo o fato de ser o mesmo livro, porque as leituras são tão variadas quanto o número de leitores) que eu conheci acho que quase metade das pessoas com quem ainda tenho contato hoje em dia. Foi lá que comecei a ler sobre feminismo pela primeira vez, foi num fórum de Harry Potter que a ideia do Minoria é a mãe nasceu. Era lá que se discutia tudo, das nossas vidas pessoais a política, feminismo e, por que não, nossos escritos originais. Professores, escritores, médicos, advogados, jornalistas, estudantes, you name it - estávamos todos lá.

Não acho que ficar mais velho necessariamente te faça se desprender de algum fandom, mas os interesses e o tempo que se pode dedicar a eles certamente vão mudando e adaptações têm que ser feitas. Harry Potter sempre vai ter a mesma importância pra mim ,independentemente da minha idade, mas o que eu tinha a dizer eu já disse, o que eu tinha de escrever eu já escrevi. Minha participação ativa no fandom se encerrou naturalmente.

Aí um dia eu decidi assistir Supernatural. Você pode imaginar as consequências.

É possível assistir/ler muita coisa sem necessariamente se envolver ativamente no fandom, ou então só consumir fics, gifs, etc, e não necessariamente estar lá dentro. Supernatural, no entanto, me engoliu.

É impressionante como a experiência muda, tanto de obra pra obra quanto de época pra época. Eu cresci dentro do fandom de HP; amadureci minha escrita, meu jeito de argumentar, minha capacidade de analisar o que lia. Reparei que o modo como você produz depende muito de como você consome. Nunca li Harry Potter em inglês, salvo o último livro (por puro desespero, porque ia demorar muito pra lançar em português, mas minha leitura não era lá essas coisas na época). Até hoje ainda não cheguei a fazer isso (taí uma boa ideia pras férias). Consequentemente, eu escrevia fic em português, lia em português e usava alguns termos e construções típicas das traduções brasileiras. Eu não saberia escrever fic de Harry Potter em inglês sem ter lido os livros nessa língua antes. 

Supernatural, no entanto, eu consumo em inglês. Existe o fandom brasileiro e existem brasileiros no fandom gringo, mas acabei me metendo nesse último porque, mais uma vez, a forma como eu consumo determinada mídia influencia muito o que eu vou procurar sobre ela. Faz anos que não leio fic em português, uns dois anos que comecei a escrever análise da série (meta) em inglês e pouco mais de um ano que me meti a escrever fic em inglês também. E olha aí o desenvolvimento de novo: muito do inglês que eu aprendi nesses últimos dois anos está diretamente relacionado a quantidade de fic que leio e ao tempo que passei escrevendo. 

A dinâmica do fandom gringo é diferente, os formatos são diferentes (seja pelo tempo que já passou, seja pelos sites novos e novos tipos de consumir e comunicar produção), a mídia em si é diferente; consumir uma série é diferente de um livro. Cheguei no fandom de SPN já como uma pessoa mais crítica, e muito da visão e do fascínio que eu tenho com o fandom também decorre disso; nunca ficou tão evidente pra mim que fanwork também tem a ver - e muito! - com poder. Pra falar com conhecimento de causa, devo falar sobre Supernatural: é uma série antiga (no sentido de que já tem uns dez anos), que ainda conserva muitos dos problemas e modelos compartilhados por séries que acabam chegando nessa idade. Supernatural tem uma importância pra mim que vai muito além dos aspectos que tenho comentado aqui superficialmente, e por isso mesmo eu digo e repito quantas vezes for necessário que a série é super problemática. 

SPN tá aí há dez anos reproduzindo machismo, sem ter representação queer, com seus momentos de racismo, culpabilização da vítima e todo tipo de problema que você quiser nomear. Eu também posso passar o dia todo falando de como a série é um desastre depois da quinta temporada, mas vamos resumir essa parte em “problema de roteiro”. Mas a décima temporada começou agora e toda terça-feira eu chego correndo da faculdade dez horas da noite pra não perder o streaming do episódio novo; mês passado terminei uma fic na qual trabalhei quase o ano todo; don’t even let me get started em como eu melhorei meu desenho depois que voltei a desenhar regularmente só pra poder desenhar fanart. Por quê? Por que insisto em algo que não é bom, que não me representa?

SPN é uma série feita por homens, para homens, e sobre homens, como… bem, basicamente qualquer outra coisa no mundo. E a fanbase de SPN é enorme, é antiga, e é enormemente composta por mulheres (assim como grande parte dos fandoms em geral). Não sei se tem alguma pesquisa sobre isso, mas por experiência própria posso também dizer que pessoas heterossexuais não compõem uma parcela muito grande do fandom, ou pelo menos não da parte do fandom que produz mais do que consome fanwork. Por quê?

Este é outro assunto sobre o qual eu poderia passar uma vida falando, mas para os fins desse post vamos usar a versão resumida: representação na mídia importa. Ainda tem um caminho longo e exaustivo pela frente, mas de uns anos pra cá essa representação tem começado a melhorar um pouquinho. Séries mais recentes já têm formatos e personagens mais diversos que fariam dinossauros como Supernatural se tremerem todinhos. Mas nem sempre foi assim. Hoje tem um pouquinho mais de variedade e certamente muito mais acesso a essa variedade do que anos atrás (alô internet), mas a mídia mainstream ainda é dominada pelos padrões de sempre, que não estão interessados em respeitar seu próprio público.

Então por quê?

Eu posso falar por mim. Se eu tenho aqui em mãos algo que não me representa, que talvez nem bom entretenimento seja, eu posso simplesmente largar ou posso também subverter essa situação. Ambas as opções são válidas. Falando especificamente da segunda, é assim que fanwork acaba refletindo o público da obra em vez da obra em si. Esse ano houve a queer Sam week; uma semana destinada a produzir fic, art, poesia, qualquer coisa envolvendo o personagem Sam sendo queer.

Se você assiste SPN e pensou “mas ele é hetero!” então senta que lá vem mais história.

A primeira coisa que eu posso discutir é que há controvérsias, porque Sam é praticamente um dos únicos personagens que nunca afirmou ser hetero na série, mas se eu começar isso agora a gente nunca vai sair daqui. A segunda coisa que posso dizer é que, mesmo que ele fosse canonicamente hetero, não é isso que importa.

Supernatural tem uma personagem que já apareceu em mais de dois episódios que é canonicamente lésbica, a Charlie. Se eu começo a escrever sobre a Charlie sendo hetero eu apago a única representação queer canon da série. Se eu precisasse de personagem hetero eu pegaria… literalmente qualquer um dos outros. Quando eu pego um personagem supostamente hetero, no entanto (supostamente porque mesmo quando não sai da boca deles que são hetero a tendência é assumir que são assim mesmo, porque heteronormatividade etc etc), e escrevo sobre ele sendo gay, bi, trans, ace, etc, o que eu estou fazendo é tomando pra mim o poder de fazer com que essa obra me inclua. A obra em si provavelmente nunca vai fazer isso; então eu vou fazer. Não existe nada no mundo que me impeça de assistir SPN e de escrever sobre SPN vendo personagens queer no lugar dos personagens supostamente hetero. 

Pouco da importância de eventos como a queer Sam week tem a ver com o fato de ele ser ou não canonicamente queer; mas sim com o fato de que os fãs são queer. Se você ainda se pergunta porque isso importa, pense um pouco no quanto da importância da ficção vem do fato de nós podermos nos identificar com o que lemos/assistimos.

Acho que não tem nada que ilustre mais o que eu tentei dizer nesses últimos parágrafos do que o fato de que tantas vezes a reação a essas fics seja um simples “Thank you for writing this.”

sábado, 30 de agosto de 2014

docência (ou o que estamos fazendo de errado)

Fun fact: eu não resolvi cursar Letras porque queria ensinar. Eu queria Tradução, mas Licenciatura era o que tinha pra hoje, então beleza. Ensinar até o começo desse ano era uma curiosidade, algo que eu achava que gostaria de fazer em outra vida, porque nessa não seria capaz de me articular o suficiente, de saber o suficiente, de ter o domínio suficiente... Enfim. Mas daí me peguei me interessando mais e mais por educação e acabei começando a dar aula também e, olha só, nem é impossível. 

Mas não era sobre isso que eu queria falar, isso é só background. O que eu queria falar mesmo era sobre a responsabilidade que está nas mãos do docente. Faz muito pouco tempo que eu dou aula (só alguns meses), então isso é mais sobre a minha experiência enquanto aluno do que como professor, mas vou começar com um exemplo da segunda situação.

Ensino Inglês para crianças de quatro a sete anos - uma verdadeira aventura - e não é difícil notar a diferença que apenas alguns anos fazem pra elas, não apenas em relação ao seu próprio desenvolvimento, mas em como elas começam a internalizar as regras do mundo ao redor. As meninas de quatro anos da minha primeira turma correm, pulam, se sujam e dificilmente se importam se a cor que elas gostam é azul ou rosa; em apenas três anos muitas delas (senão todas) vão aprender que todas essas coisas não são coisas de menina, que quando um menino implica com elas isso é natural, que não adianta de nada reclamar do que incomoda. Quanto mais próximas da puberdade, mais restrições elas vão aprender e internalizar. It's all downhill from there.

Outro dia, na turma dos de seis/sete anos, estávamos fazendo uma brincadeira no quadro. Uma criança tinha que ir até lá e desenhar um brinquedo, e as outras iam ter que adivinhar qual era antes de ela terminar o desenho. Um dos meninos desenhou um videogame, e uma das meninas disse "eu sabia que ele ia desenhar esse, porque é brinquedo de menino", ao que eu respondi que menina brinca de videogame também, e listei algumas outras coisas que supostamente seriam "de menino" mas que menina também brinca. Outra aluna então puxou a barra da minha blusa e sussurrou, morta de feliz, "teacher, meu brinquedo preferido é videogame. e carrinho e jogar bola."

Parece tão simples e, na verdade, é tão simples. Professora não é só uma pessoa que fica ali na frente passando informação pra uma turma de pessoas sentadinha tomando notas; ela é também a pessoa em quem você busca afirmação, uma figura senão de autoridade, de conhecimento, alguém que supostamente está ali pra te ajudar a aprender e confirmar se você está no lugar certo. Essa menina que eu mencionei vive ouvindo que ela não está fazendo as coisas do jeito certo, e só vai ouvir mais e mais e, guess what, vai acabar acreditando nisso. 

O que eu percebo em sala de aula, agora principalmente do lado de lá, do lado de quem assiste a aula, é que as pessoas subestimam demais o poder que uma pessoa em posição de autoridade tem, principalmente quando ela se cala. 

Semestre passado, um professor comentou a mudança no facebook pra permitir a mudança para  pronomes neutros, o que prontamente se tornou piada no momento, com pessoas dizendo que agora dava pra mudar o gênero pra "abacaxi" e o caralho a quatro. Em uma sala de aproximadamente trinta pessoas, quem não estava rindo estava calado, e eu ali sem fazer ideia de quem, além de mim, poderia estar possivelmente ofendide com aquilo. Deixa eu te dar uma dica de porque as pessoas nem sempre levantam a voz pra se manifestar quando alguma coisa as ofende: nós temos medo. Nós não temos mais energia pra isso depois de saber exatamente qual é a reação das outras pessoas. Nós não conseguimos. Motivos não faltam. Tem uma sala inteira ao meu redor rindo de mim, em um dia particularmente ruim, eu vou lá botar o meu na reta quando sei que não adianta nada? Thanks, but no.

Ainda naquele semestre (exemplos não me faltam), mencionei uma pesquisa que tinha visto outro dia. A pesquisa era sobre como os homens entrevistados respondiam que nunca estuprariam ou estupraram ninguém, mas que quando a pergunta era refraseada para descrever a situação sem usar a palavra estupro a resposta mudava completamente (por exemplo, "Você insistiria em sexo com uma mulher que estivesse bêbada?" etc. A resposta então mudava para sim). Comentei sobre o problema que é o fato de que as pessoas simplesmente não saberem o que é estupro; que ainda acham que só pode acontecer num beco escuro à noite quando algum desconhecido ataca uma mulher.

Mais ou menos metade daquela turma (senão mais) era composta por mulheres, mas quem dominou a discussão daí em diante foram os homens, falando sobre como a metodologia não era correta porque ela induzia a resposta que queria, que se a pessoa não sabe que é estupro então não é estupro (toma aqui uma estrelinha pelo seu raciocínio genial, thanks for nothing), e em menos de cinco minutos toda a discussão girava em torno do homem, que na real é uma boa pessoa, só estava sendo induzido a responder pra poder ser contado como estuprador. Nenhuma palavra sobre ensinar as pessoas sobre consentimento foi dita novamente naquele dia. Muitas palavras foram ditas sobre como mulheres podem provocar o estupro. 

Quê que o cu tem a ver com as calças? Tem um terceiro elemento nesses cenários: o bendito professor. Essa é outra coisa que noto não apenas nesses professores em específico, mas em praticamente todos os que já tive: eles ficam na deles. O papel da pessoa que ensina não é orientar só quando você passou dos vinte e tá precisando escrever artigo e monografia, mas sim como parte integrante do ser professor. Quando eu estou assistindo a uma aula, eu sou igual a todo mundo. O que eu falo é respeitado pelos meus colegas na mesma medida em que respeitariam a fala de qualquer outra pessoa na minha mesma posição; o professor não está nessa posição. 

Eu posso, quando estou do lado de cá, de quem ensina, não estar mandando em ninguém e posso estar no mesmo nível que todo mundo, agindo mais como alguém que media a conversa do que como autoridade, mas isso não muda o fato de que é pra mim que as pessoas que eu estou ensinando vão se voltar. Afinal, não tô ali pra orientar? Pra mediar? É muito legal deixar as pessoas discutirem entre si e encontrarem um consenso e tudo o mais, mas no momento em que tudo isso sai de foco e eu apenas me calo, eu contribuo pra uma desinformação e silenciamento que não deveria estar ali, e eu não estou mais cumprindo o meu papel.

Lembra do começo do post, da aula de Inglês das crianças? Uma coisa tão simples quanto não dizer que não tem nada de errado em menina brincar de videogame teria sido o suficiente pra tornar aquele momento hostil não somente pra menina que gosta de jogar, mas pra todos os outros alunos que apenas recebem a confirmação de uma suposta regra que é atirada neles por todos os lados. Minha aula, aquela horinha duas vezes por semana, muito provavelmente não vai ser o suficiente pra que essas internalizações sejam quebradas. Mas eu sou uma pessoa só. Existe tanta gente ensinando nesse país, a gente pode fazer melhor que isso.

sábado, 23 de agosto de 2014

bissexualidade, (não-)monogamia and some other stuff

Um amigo me perguntou outro dia se meu posicionamento em relação a relacionamentos românticos é uma questão de política ou de preferência pessoal. 

First of all, rejeitar a ideia de um relacionamento romântico não é o mesmo que rejeitar o amor; quando se fala em amor assim, sem especificar qual o seu "tipo", pensa-se logo em amor romântico, e qualquer outra relação fica relegada a segundo plano. É assim que quando se diz "nah, A e B são só amigos" o que se lê é que a relação romântica está um degrau acima da amizade, e assim vai.

Existem relacionamentos românticos/sexuais que não são monogâmicos, mas o modelo principal que nos é enfiado goela abaixo desde muito cedo não são esses. Também existem relações monogâmicas que dão certo e em que existe respeito e liberdade individual, mas a monogamia ainda tem o ranço da heteronormatividade. 

Dentre os muitos absurdos que eu ouço por aí, um deles é que ter relacionamentos abertos é um individualismo exarcebado; isso só quando se trata da mulher, é claro. Homem cis não-monogâmico não tem nada de revolucionário. A base da monogamia é o fato de que é uma relação fechada, ou seja, seu integrantes supostamente não devem se relacionar com pessoas fora daquela relação. O homem infiel, no entanto, é tolerado - até mesmo esperado. A mulher infiel? Oh well.

Nos moldes da monogamia heterossexual, quem reina é a posse. Voltando à questão do individualismo, em que ponto ele é demais quando se trata de quem nunca foi reconhecido ou tratado como indivíduo? A mulher dentro da monogamia pautada no ciúme é apenas um objeto de posse; algo que você tem e ninguém mais pode ter. Infelizmente esse modelo se infiltra nas relações não-heterossexuais também; tanto porque estamos todos submetidos a mesma sociedade quanto porque esse é o modelo mais palatável, o que tem mais chances de ser engolido pelos heterossexuais como legítimo, mas essa é outra história pra outro dia.

Chegamos na bissexualidade¹, enfim. A mulher bissexual dentro de um relacionamento, de qualquer natureza, com um homem é automaticamente lida como heterossexual. Eu, enquanto pessoa socializada e lida como mulher, não tenho plaquinha pra pregar na testa e andar por aí dizendo "bissexual". Voltamos à individualidade; ser bissexual faz parte da minha identidade. Puramente existir, pra nós, já é um ato revolucionário. Quando digo nós me refiro a pessoas queer, que não se encaixam no padrão heterocis de sexualidade e/ou gênero. Quando uma pessoa me identifica como hetero, ela está na verdade me identificando como o meu opressor. Não sou hetero, nunca fui, não passo a ser durante a relação com algum homem, assim como não passo a ser lésbica quando estou me relacionando com alguma mulher.

So hell yeah, eu prezo pela minha identidade e pela minha individualidade, e minha escolha por não entrar mais nesse tipo de relacionamento de posse tem muito a ver com isso. É por uma questão política, sim, de empoderamento e também de preferência pessoal puramente porque nunca me dei bem com as expectativas colocadas em cima de relacionamentos românticos. All in all, eis a resposta: ambos.


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¹: se liguem que por bissexualidade não quero dizer "atração por homens e mulheres" mas sim pelo meu gênero e outro que não seja o meu. A diferença pra panssexualidade não é tanta assim; panssexualidade seria basicamente não se importar com gênero at all, mas por aqui o termo não é tão difundido, então por questões de visibilidade continuo a me identificar como bi.

quinta-feira, 21 de agosto de 2014

da origem


Não sou lá muito fã de post de apresentação, mas acho necessário, então vamos lá. Talvez você saiba, talvez não, mas eu costumava escrever no blog Minoria é a mãe, cuja era de ouro aconteceu há uns dois anos. Ele começou com três pessoas, depois duas, depois uma, e hoje em dia ainda está lá firme e forte com os textos antigos e os mais recentes. Quando a gente teve a ideia e lançou o blog, eu estava começando a entrar em contato com o feminismo; meus posts refletiam isso. Na verdade, dá pra notar que a proposta toda do blog é bem voltada para um tipo de Feminismo 101, com textos introdutórios sobre diversos assuntos. Os comentários que recebíamos confirmaram nossas suspeitas: grande parte das pessoas que chegavam lá estavam em busca de (ou só toparam com) um lugar por onde começar. 

Acho importante começar falando do Minoria porque, afinal, essa é a história de porque parei de escrever sobre feminismo e porque voltei. Parei por muitos motivos, entre eles a boa e velha falta de tempo, mas também desmotivação e o fato de que eu não me identificava mais com o que escrevia (entre outras coisas).

Eu não desisti do feminismo (e nem poderia), mas me afastei do ativismo. Não conseguia mais escrever e, principalmente, não conseguia mais escrever do jeito que fazia no Minoria. Insisto tanto nisso porque esse é um blog novo, então você se pergunta, ué, então por que não simplesmente voltar a escrever no blog antigo? Primeiro porque eu não sou mais a mesma pessoa que escrevia lá; eu digo que na época eu era iniciante não porque hoje eu seja especialista em alguma coisa, mas sim porque na época eu ainda estava descobrindo um mundo novo, cheio de problemas que precisavam ser vistos e entendidos. Hoje eu já estou nesse mundo, ainda cheio de problemas pra descobrir, e com os mesmos problemas de antes já vistos e nunca resolvidos. Então eu parei e pensei: eu vou morrer falando disso tudo e nada do eu faça vai mudar alguma coisa. Bad, bad place.

O segundo motivo é uma questão de formato e de… tom. O que eu escrevia pro Minoria é diferente do que eu escrevo hoje em dia; eu queria um espaço pra escrever sobre o que ainda estou pensando, ainda estou reunindo, algo que naturalmente teria um tom bem mais pessoal do que os textos que eu costumava escrever, e que só iria confundir aqueles que chegavam lá em busca de uma introdução. No fim das contas, o que eu quero dizer é que hoje em dia eu percebo que o que eu escrevia era ingênuo demais. Eu não estava nem arranhando a superfície do que realmente me inquietava; eu tenho dúvidas, não respostas.

Já que esse negócio já tá muito grande e eu tô falando de tom pessoal mesmo, vamos a um fato importante: quem sou eu. Muni é o nome pelo qual eu me identifico na internet já há algumas eras, agora com a recente inclusão do acento por motivos de: eu quis assim. Mas a pronúncia fica a gosto do leitor, no hard feelings. Hoje em dia sou estudante de Letras Inglês, mas no meu passado nebuloso podem ser encontrados seis semestres cursados de Engenharia de Computação. Digamos que fiz umas más escolhas no ENEM de 2010, mas isso já foi consertado. Tenho vinte e dois anos e ainda preciso mostrar identidade por aí pra provar que tenho mais de dezoito. Trabalho como analista de sistemas / english teacher, porque o que seria da vida sem emoção, não é mesmo? Nas horas vagas, também conhecidas como aquele momento em que eu deveria estar dormindo, escrevo fic, choro por personagens fictícios, faço freela de tradução e também desenho.

O que eu pretendo fazer nesse blog (aê finalmente) é, obviamente, tudo isso sobre o que eu já tagarelei no começo, mas também traduzir. Tem muitos posts excelentes e informativos pra caralho por aí que infelizmente não são acessíveis pra quem não lê inglês, então vamos consertar isso. Outra característica deles é que nem tudo pode ser simplesmente trazido pro contexto do feminismo no Brasil porque ele é diferente do contexto do feminismo gringo em vários aspectos. Vamos falar sobre isso também. Ou tentar, sei lá.

Wish me luck.