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sexta-feira, 24 de outubro de 2014

fandom e literatura

(ou "quando a arte não é arte")¹


Quem escreve fanfic provavelmente já deve ter ouvido (ou lido) que fazer isso é perda de tempo. Principalmente se você tem alguma intenção de escrever trabalhos ~originais~ (ou seja, não baseados em alguma obra pré-existente) e publicá-los. O argumento é que perder tempo escrevendo histórias sobre personagens ou universos que nem seus são toma o tempo precioso que deveria estar sendo dedicado a escrever um livro de verdade.
O meu argumento, no entanto, é que quem diz isso nunca leu uma fic boa na vida e/ou nunca escreveu.
Acredito que escrever nunca é perda de tempo. Eu posso não passar 24h por dia trabalhando na obra máxima da minha vida, mas cada coisa que eu escrevo (até esse post!) contribui para que eu escreva cada vez melhor. Sei disso porque passei literalmente metade da minha vida escrevendo e vi não apenas o meu progresso, mas também o das pessoas que conheci pelo caminho e que também escreviam como eu. Quem escreve fanfic geralmente começa muito cedo, sem saber de praticamente nada. Vamos escrevendo por diversão e vamos lendo e amadurecendo essa escrita.
Digo que a pessoa hipotética do começo do post nunca escreveu porque pra subestimar o trabalho de ficwriter a pessoa certamente não tem noção da dedicação que se coloca nele. O fato de que você está escrevendo sobre personagens de outro autor não necessariamente significa que isso torna tudo mais fácil; fanfic quase sempre acaba requerendo que você seja capaz de analisar esses mesmos personagens muito mais profundamente do que se esperaria de outro tipo de leitura. Ler para escrever vai além de receber e interpretar a informação que está ali disponível no livro apenas com o objetivo de entender a história; eu não quero apenas entender a história, eu quero meios de destrinchar aquilo e fazer algum detalhe diferente. Sem falar que pesquisa tem que existir de qualquer forma, seja fanfic ou não.
Fanfics naturalmente não costumam ser publicadas porque, bem, os personagens pertencem a outros autores, mas cada vez mais há pessoas que publicam o que antes já foi fanfic, mas adaptada para personagens criados por elas mesmas (não, não me refiro apenas a Twilight).
A pessoa hipotética do começo do post possivelmente também não se lembra da quantidade de fanwork da Bíblia que existe no mundo (Michelangelo, anyone? O evangelho segundo Jesus Cristo, de Saramago?). De qualquer obra, na verdade. Histórias sobre os deuses gregos. O Conde de Monte Cristo, Os Miseráveis; musicais, filmes, poesia… interpretações e referências a obras pré-existentes existem há muito, muito tempo. Por que algumas são literatura, arte, e outras não?
Cânone, né amgs. Cânone pode.
Cânone também é conhecido como as obras escritas por homens brancos hetero ao longo de centenas de anos, que têm o desplante de crer até hoje que o que escrevem é universal. Universal pra quem, eu me pergunto, porque para ao menos metade da população certamente não é. Escrevem bem, a história é massa? Certamente. Representam tudo o que creem que representa? Não.
[Da série Coisas que Ouço na Aula, Não Necessariamente dos Professores, mas que são Igualmente Assustadoras: livros escritos por autores queer, mulheres, minorias raciais ou outras minorias sociais de modo geral “não são literatura” porque “distorcem o cânone” e “não são universais”. Porque se você escreve sobre a sua realidade e a sua realidade não é a de um homem branco ocidental cristão cis e hetero (em qualquer ordem, mas cuidado pra não errar nas proporções), então você só tá escrevendo pra “fazer política” e “não é arte de verdade”.]   
O texto que eu tinha mencionado no post anterior é esse aqui, e o trecho que me interessou mais pra o que estou falando é o seguinte (grifo meu):
(...) 45,5% das histórias postadas no Archive são M/M (i.e. slash), enquanto 24,3% são classificadas como “Gen” (i.e. sem romance), 20,2% são F/M, enquanto F/F toma apenas uma pequena parte do gráfico. (Mais recentemente, o mesmo usuário postou mais estatísticas sobre a composição do Archive; os vinte e quatro pares mais populares são todos M/M, e apenas onze dos primeiros cinquenta e um são M/F [Nenhum era F/F]). Embora outros arquivos sejam um pouco menos homogêneos - Fanfiction.net, o site mais popular de fanfics, hospeda números enormes de histórias sobre Star Wars, Piratas do Caribe e Jogos Vorazes, pra citar alguns, além dos esperados clássicos slash como Supernatural e Sherlock - o Archive of Our Own, no entanto, representa um subconjunto importante do fandom, e é notavelmente mais acolhedor em relação a conteúdo sexualmente explícito do que o Fanfiction.net, que não aceita histórias com conteúdo explícito.
Quem vê de fora fica perplexo com a popularidade de fic slash entre mulheres, mesmo que essa pessoa não tenha sido apresentada à verdade fria e dura dos números, já que a reputação (precisa) do fandom é de uma comunidade primariamente feminina. Embora não haja, é claro, estatísticas sobre exatamente quão poucos homens participam do fandom, eles certamente são uma minoria. Embora fandom e fanfiction sejam tecnicamente públicos - mais uma vez, você pode achar qualquer coisa no Google e, para citar um filme que de outro modo não gosto muito, “Na internet não se escreve a lápis, Mark, ela se escreve a caneta” - os espaços do fandom dão uma ilusão de privacidade, de um tipo de comunidade fechada que não é exatamente fechada, mas simplesmente não é do interesse daqueles que não a conhecem. Da mesma maneira que, centenas de anos atrás, muitas mulheres escreviam extensamente mas tipicamente apenas para circulação privada entre amigas e conhecidas, fanfiction é parte de uma troca cultura comunal, informal, que funciona não como um empreendimento capitalista, mas como um tipo de enonomia de doação: eu vou escrever essa história pra você, uma escritora de fanfic pode dizer, enviando para a amiga trechos de prosa; me escreve algo em troca.  
A criatividade comunitária do fandom pode enriquecer as almas de jovens mulheres ao redor do mundo - de modo nenhum uma conquista insignificante - mas enquanto isso está acontecendo, todos os tristes jovens escritores que certamente olhariam para a cultura do fandom e fanfiction com desdém estão ocupados escrevendo romances que um dia serão enviados para editores e aparecerão nas vitrines de livrarias independentes. Esses tristes jovens escritores são Jonathan Franzens em treinamento, e eu provavelmente os acharei igualmente intoleráveis, mas eles entrarão na cultura literária mainstream muito mais rápido que meninas e mulheres que estão enviando enviando histórias umas pras outras online, e serão capazes de viver da sua escrita, ao menos em parte, o que uma jovem escritora de fanfic nunca conseguirá fazer.
Fanfiction é apenas mais um exemplo dos padrões duplos que vivemos. Eu fico muito feliz de ver o fandom sendo estudado e, principalmente, descrito; fandom é uma cultura majoritariamente feminina, criado e mantido por mulheres, e que por esse mesmo motivo é visto menos seriamente, mesmo em comparação com manifestações similares vindas de homens.
Eu ainda tenho tanto a dizer sobre fandom e provavelmente não me articulei direito nesses posts, mas queria terminar trazendo a tradução de algo que foi dito pela Euclase alguns dias atrás. Euclase é uma grande fanartist que produz principalmente arte sobre Supernatural, e alguns outros fandoms também. Como o estilo dela é hiperrealista, volta e meia alguém pergunta por que ela desenha personagens fictícios quando poderia estar fazendo arte ~de verdade~. 
Acho que o conceito de atração e beleza é fascinante (e meio que incrivelmente perturbador), especialmente quando se aplica a meninas e como a imagem de meninas é vendida. Meninas são ensinadas, basicamente desde muito pequenas, que não somos boas o suficiente. Não somos atraentes o suficiente. Corporações inteiras foram construídas ao redor do conceito de fazer mulheres se sentirem mal sobre si mesmas.
Se você quer que um homem compre um carro, você reafirma que é incrível e merece coisas incríveis para combinar com a sua incrível masculinidade. Para as mulheres é dito exatamente o contrário. Não importamos nossa aparência, ou como nossos corpos são - devemos ser mudadas. Somos criadas para acreditar que já começamos a vida com defeitos. E, mais perturbador ainda, somos criadas para nos vermos do jeito que os homens nos veem.
Fan art feita por meninas, na minha opinião, é uma coisa muito importante. Não é convencional, obviamente. Não é comumente aceita como arte legítima, ou mesmo qualquer arte, em parte porque são personagens com copyright, mas em parte também porque derruba a noção de que homens devem ter opinião sobre a aparência das mulheres. É um modo pelo qual meninas podem reinvidicar autoridade sobre seus próprios olhares. Fan art é como meninas dizem “Eu quero olhar pra isso e apreciar isso por mim mesma, e eu quero fazer isso com outras meninas”.
Mas é mais do que isso. Porque há muitas coisas que são comercializadas para meninas. Playgirl e Viva. A revista Glamour. Talk shows. Obviamente há muitas coisas comercializadas para meninas que satisfazem o olhar feminino.
Mas fan art, junto com fanfiction, é uma das poucas coisas em que o conteúdo, que era originalmente comercializado para o mainstream (por homens e para homens - e especificamente homens brancos hetero) está sendo reinvidicado por mulheres. O que acontece é uma mudança de poder. O que uma vez pertenceu aos homens tem sido reinventado por mulheres, celebrado por mulheres, e compartilhado entre mulheres.
(...) Sei que muitas pessoas dizem, especialmente sobre minhas coisas, “Bem, isso é só copiar fotos, até mesmo pra fan art. Não é original. Você não está reinventando nada se está apenas desenhando um retrato.”
E isso foge totalmente do ponto. Porque eu passo tempo com aquilo que acho que é atraente, seja esteticamente ou emocionalmente interessante ou qualquer coisa, e esse é o meu tempo. Ninguém mais tem a ver com isso. É como comprar um produto sem comprar toda a porcaria da mensagem invalidante que vem com ele.
E é por isso que fan art importa tanto pra mim. Eu fiz de mim a soberana do meu próprio olhar.

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¹ peço encarecidamente que vocês leiam isso aqui e depois se perguntem se é arte ou não.

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