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quinta-feira, 26 de fevereiro de 2015

[Tradução] Bissexualidade e binários revisitados

Comecei a traduzir esse post do blog da Julia Serano aproximadamente 45 anos atrás e só agora sentei e revisei o negócio pela última vez. Como é um post muito longo, minha intenção original era fazer um post separado pra colocar minhas observações sobre alguns pontos, e provavelmente ainda vou fazer isso, só não agora. Tem algumas (várias) coisas que eu não concordo totalmente com a Serano, entre elas a linguagem que ela usa pra se referir a corpos "masculinos e femininos", mas isso vai ficar pra outra hora. Por enquanto, achei relevante traduzir o ensaio principalmente por conta do que ela fala sobre o monossexismo/bifobia, como a comunidade bissexual é desarticulada (ou, pior ainda, muitas vezes nem existe), e uma explicação mais detalhada de por que a bissexualidade não reforça o binário de gênero. There you go.

.x.


Meu ensaio “Bissexualidade não reforça o binário de gênero” apareceu pela primeira vez na internet em outubro de 2010. O principal motivo pelo qual escrevi aquele texto foi para ilustrar como a alegoria do reforço (i.e., a noção de que certos gêneros, sexualidades ou identidades “reforçam” o binário de gênero, a heteronormatividade, o patriarcado, ou o sistema-de-gênero-hegemônico-de-sua-escolha) é distribuída seletivamente em comunidades queer e feministas para policiar suas fronteiras. Uma vez que comunidades queer são dominadas por pessoas não-femininas, cisgêneras, e exclusivamente gays ou lésbicas, esses indivíduos quase nunca são acusados de “reforçar o binário de gênero”. Em contraste, identidades mais marginalizadas (e.g., bissexuais, transgêneros, femme) são regularmente sujeitas à alegoria do reforço. Embora meu ensaio sobre “reforço” tenha recebido muitas respostas positivas, ele também rendeu um pouco de criticismo bem rigoroso, particularmente dentro de certos segmentos das comunidades transgênero e gênero variante. Todas as críticas que ouvi ou li praticamente ignoraram o meu ponto principal - isto é, as formas ocultas de sexismo que determinam quem é acusado de “reforçar” algo e quem não é - e no lugar disso focaram somente na afirmação habitual de que a palavra “bissexual” (e, por associação, qualquer um que se identifique como bissexual) realmente “reforça o binário de gênero”.

Desde então, eu tenho considerado dar seguimento a esse texto para discutir os inúmeros problemas de tais reclamações (além do fato óbvio de que elas discriminam bissexuais por sentirem atração por “dois” sexos, mas não a esmagadora maioria de gays e lésbicas que veem a si mesmos como pessoas que sentem atração pelo “mesmo” sexo, e não pelo sexo “oposto” - um conceito que parece ser igualmente binário). Além disso, desde que meu texto foi publicado, tomei conhecimento de um excelente post escrito por Shiri Eisner, chamado “Words, binary and biphobia, or: why “bi” is binary but “FTM” is not”. O post de Eisner traz uma série de argumentos similares aos meus, mas também fomentou algumas discussões que não tinham me ocorrido antes, e que me levaram a pensar sobre esse debate de outras formas. Por todas essas razões, sinto que vale a pena escrever um novo ensaio (esse mesmo!) para revisitar o assunto.

Antes de me aprofundar nesse tópico, deixe-me declarar que estou escrevendo esse texto pela perspectiva de uma mulher transexual que se identifica como bissexual. Uma vez que as pessoas pintam aqueles que se identificam como bissexuais como “binaristas” pela escolha de nossos parceiros, deve-se constar que me relaciono com homens e mulheres, pessoas trans e cis, que se identificam como binárias ou não-binárias. Eu certamente não falo por todas as pessoas bissexuais ou transexuais. Minhas considerações nesse assunto são as minhas próprias, e se você discorda com o que tenho a dizer, por favor considere a possibilidade de que a raiz do nosso desacordo esteja num ponto de vista diferente. Finalmente, ao longo deste ensaio, alguma vezes usarei a palavra “nós” para me referir a pessoas transgêneras, e outras vezes para me referir a pessoas bissexuais. Talvez alguns achem isso um pouco confuso, mas é uma consequência inevitável quando uma pessoa abrange múltiplas identidades.


Algumas preliminares: monossexismo, invisibilidade bi e comunidades bissexuais (ou a falta delas)

No meu ensaio anterior, usei a palavra “bissexual” porque (historicamente e atualmente) é o termo mais comumente usado e entendido para denotar pessoas que não limitam suas experiências sexuais a membros de um único sexo. Bissexual certamente não é uma palavra perfeita, mas novamente, também não são gay, lésbica, sapatão, homossexual, heterossexual, straight, queer, assexual, ou qualquer outro termo relativo a sexualidade. No entanto, talvez ainda mais que nos termos acima mencionados, pessoas bissexuais em experiência muitas vezes repudiam fortemente a classificação como “bissexual”. Por exemplo, muitas preferem os termos queer, pansexual, omnisexual, polisexual, multisexual, ou até mesmo nenhum, no lugar de bissexual. Às vezes uso o termo bissexual por experiência para me referir a pessoas que, independentemente da sua escolha de termo, não limitam suas experiências sexuais a membros de um único sexo. Mas infelizmente algumas pessoas também rejeitam bissexual por experiência porque contém a palavra bissexual. Uma solução alternativa, então, levando em conta o acrônimo LGBTQIA+, é descrever pessoas bissexuais por experiência como BMNOPPQ, onde B = bissexual, M = multisexual, N = nenhuma classificação, O = omnisexual, P = pansexual, P = polisexual e Q = pessoas bissexuais por experiência que se identificam primariamente como queer (em ordem alfabética). 

Estou defendendo a terminologia BMNOPPQ? Não necessariamente. Acho que é bastante desajeitada e confusa. Pessoalmente, eu preferiria se nós todos simplesmente aceitássemos bissexual como um termo guarda-chuva imperfeito, embora facilmente entendido, para pessoas que compartilham da nossa experiência. Mas já que não espero que isso aconteça tão cedo, usarei BMNOPPQ aqui na esperança de que possamos colocar de lado o problema de classificação, e no lugar disso focar no que a acusação de bissexual-reforça-o-binário-de-gênero significa para pessoas BMNOPPQ.

Declaração importante: acima, quando usei a frase “compartilhar da nossa experiência”, não estou de forma alguma insinuando que pessoas BMNOPPQ compartilham do mesmo histórico sexual, ou que experimentamos nossas sexualidades da mesma maneira. Não é assim. Somos todos diferentes. Sentimos atração por diferentes tipos de pessoas, corpos e expressões de gênero. Todos nós nos enquadramos em posições ligeiramente diferentes da temida “escala de Kinsey”. Alguns de nós estão mais imersos em comunidades queer, enquanto alguns de nós existimos primariamente em comunidades hetero, e muitos (senão a maioria) de nós nos encontramos constantemente navegando nosso caminho dentro (e entre) ambas as comunidades queer e hetero. 

Então, se somos todos tão diferentes, por que se incomodar em tentar classificar ou amontoar pessoas BMNOPPQ? Bem, porque a única coisa que compartilhamos *de fato* é o fato de que todos enfrentamos monossexismo na sociedade - i.e., a suposição de que sentir atração por membros de um único sexo é de alguma forma mais natural, real ou legítimo do que se sentir atração por membros de mais de um sexo. Monossexismo é também algumas vezes chamado de bifobia. Ainda que bifobia seja certamente o termo mais comum, usarei monossexismo aqui, porque não sou uma grande fã do uso do sufixo “fobia” para discutir formas de sexismo (já que isso parece enfatizar “medo” acima de marginalização), e também porque monossexismo evita o incômodo prefixo “bi” que algumas pessoas BMNOPPQ acham repreensível (mais sobre isso daqui a pouco).

Monossexismo existe porque a maioria das pessoas, seja no meio dominante hetero ou em comunidades gays e lésbicas, veem orientação sexual como um binário rígido, onde as orientações só podem ser heterossexual ou homossexual. Esse binário hetero/homo leva diretamente à suposição monossexual - isto é, a suposição de que todos os indivíduos sentem atração exclusivamente por membros de um único sexo. (Nota: o binário hetero/homo também assume que todas as pessoas sentem atração sexual por “alguém” - uma suposição que marginaliza pessoas assexuais) Por causa da suposição monossexual, a maioria das pessoas automaticamente assume que pessoas BMNOPPQ devem ser heterossexuais se nos percebem como um casal formado pelo sexo “oposto”, ou que devemos ser homossexuais (i.e., lésbicas ou gays) se nos percebem como um casal de mesmo sexo. Esse é um dilema fundamental pelo qual indivíduos BMNOPPQ passam.

Se nós, pessoas BMNOPPQ, reinvidicamos exteriormente sermos bissexuais (ou pansexuais, polisexuais, etc), a suposição monossexual leva muitas pessoas a duvidar da validade de nossas identidades, e a projetar causas ocultas em nós. É por isso que as pessoas frequentemente dirão que “Você não é bissexual de verdade (ou pansexual, polisexual, etc), você só está confuso sobre a sua sexualidade”, ou “...é apenas uma fase”, ou “...você ainda tem um pé no armário”, ou “...na verdade, você é gay/lésbica, mas está atrás de privilégio heterossexual”, ou “...na verdade, você é hetero, mas está apenas experimentando sexualmente, ou talvez seja muito promíscuo”, e/ou “...você está em cima do muro. Escolha logo um lado!”

Em outras palavras, a suposição monossexual leva ao que tem sido chamado historicamente de invisibilidade bi: nós supostamente não existimos e qualquer tentativa de afirmar nossa existência é imediatamente frustrada por acusações de que estamos nos escondendo, fingindo ou simplesmente confusos sobre nossas sexualidades. A invisibilidade bi é o que leva muitos de nós a simplesmente nos misturar nas comunidades monossexuais existentes (sejam elas hetero, gay ou lésbica) em vez de buscar criar nossas comunidades BMNOPPQ. Essa falta de uma comunidade tem tido um efeito devastador nas pessoas BMNOPPQ. Por exemplo, ainda que sejamos mais numerosas que pessoas exclusivamente homossexuais, temos piores problemas de saúde e taxas de pobreza do que gays e lésbicas, e geralmente não somos reconhecidas ou servidas por organizações LGBTQIA+, até mesmo as que tem “B” no nome. Nossa invisibilidade é o que permite que pessoas hetero, gay e lésbicas regularmente se safem ao promover esteriótipos sobre nós - e.g., que somos mentalmente perturbados, predatórios, hipersexuais, promíscuos, enganadores e/ou inconstantes - sem que ninguém chame sua atenção ou proteste. Mas mais tristemente, a invisibilidade bi leva muitos de nós a nos identificar mais com as comunidades hetero, lésbica ou gay nas quais existimos (e das quais dependemos) do que com outras pessoas BMNOPPQ. Essa ausência de identificação com pessoas BMNOPPQ, em combinação com a pressão externa que nos é colocada para nos misturarmos nas comunidades monossexuais nas quais existimos, é a principal razão pela qual pessoas BMNOPPQ historicamente tendem a evitar ser chamadas de “bissexuais”, frequentemente recusando até mesmo qualquer classificação de sexualidade. Em contraste gritante, pessoas exclusivamente homossexuais não tendem a rejeitar definitivamente os termos “lésbica” ou “gay”, nem a se atolar em batalhas filosóficas sobre classificar ou não a sexualidade da mesma forma que pessoas BMNOPPQ o fazem.

Já ouvi inúmeras pessoas BMNOPPQ perguntarem “Por que temos que rotular nossas sexualidades?”. Concordo que não deveríamos ser forçados a reduzir nossas complexas atrações e orientações sexuais a um simples apelido. Mas enquanto ativista, eu diria que o argumento mais persuasivo para que as pessoas BMNOPPQ se unam em algum tipo de termo guarda-chuva (seja “bissexual” ou outra coisa) é desafiar o monossexismo e a invisibilidade bi. Nesse cenário, tal classificação não iria detalhar tranquilamente com quem nós somos sexuais, nem afirmar que somos de algum modo inerentemente diferentes de pessoas hetero, homo ou assexuais (porque eu não acho que sejamos), mas sim salientar que nós (e apenas nós) somos alvos de um duplo padrão sexista em particular - isto é, o monossexismo. Fazer isso nos permitiria aumentar a conscientização e desafiar o monossexismo na nossa cultura. 

Uma vez que sou mais conhecida pelo meu ativismo trans do que pelo ativismo bissexual/BMNOPPQ, devo salientar que a questão que estou colocando aqui é idêntica em forma e estrutura ao que fiz em Whipping Girl relativo ao cissexismo. O argumento é o seguinte: vivemos em um mundo onde pessoas trans são, injustamente, alvos de um duplo padrão sexista (i.e., cissexismo, análogo ao monossexismo) onde assume-se que um grupo (i.e., pessoas trans, análogas a pessoas BMNOPPQ) é menos natural, real ou legítimo do que a maioria do grupo que não compartilha daquela experiência (i.e., pessoas cis, análogas às pessoas monossexuais). Como escrevi uma vez num post chamado “Whipping Girl FAQ on cissexual, cisgender, and cis privilege”:

Quando uso os termos cis/trans, não é para falar de diferenças *verdadeiras* entre corpos/identidades/gêneros de pessoas cis e trans, mas das diferenças *percebidas*. Em outras palavras, ainda que eu não ache que meu gênero seja inerentemente diferente daquele de uma mulher cis, tenho consciência de que a maioria das pessoas costuma *ver* o meu gênero de uma forma diferente (i.e., como menos natural/válido/autêntico) dos gêneros de mulheres cis.
Eu diria que o parágrafo acima continuaria verdadeiro se você colocasse “mono” no lugar de “cis”, “bissexual/BMNOPPQ” no lugar de “trans” e “orientação sexual” no lugar de “gênero”.

Para resumir, dessa perspectiva ativista, a principal razão pela qual eu me considero trans ou bissexual *não é* para transmitir coisas que eu tenha feito (e.g., aspectos da minha transição de gênero, meus parceiros sexuais). Afinal, não compete a mim ter que reduzir as complexidades do meu gênero e sexualidade a um fragmento e fornecer isso a outras pessoas no ato. Também não estou insistindo que sou “igual” a outras pessoas trans ou BMNOPPQ quando me considero “trans” ou “bissexual”, respectivamente. Afinal, é desnecessário dizer que todas as pessoas trans e todas as pessoas BMNOPPQ são diferentes umas das outras. Ao invés disso, adoto essas classificações para ser visível num mundo em que pessoas trans e BMNOPPQ são constantemente apagadas pelos binários masculino/feminino e hetero/homo, respectivamente, e para construir alianças com pessoas que são similarmente marginalizadas para desafiar o cissexismo e monossexismo na sociedade, respectivamente.


Como renunciar ao termo “bissexual” pode impactar pessoas bissexuais/BMNOPPQ?

Ok, então com esse conhecimento em mente, vamos voltar às afirmações recorrentes de que se considerar bissexual “reforça o binário de gênero”. Lembre-se de que essa afirmação não é feita tipicamente contra pessoas que gravitam na direção de classificações de identidade sexual como gay, lésbica, sapatão, homossexual, heterossexual, straight, queer, assexual, e outros mais. Apenas pessoas bissexuais. E isso nos coloca na posição inevitável de ter que defender nossa escolha de termo constantemente.

Por exemplo, ainda que meu ensaio sobre “reforço” tenha focado em como a alegoria do reforço tem sido usada para deslegitimar ambas as comunidades trans e bissexual, ainda me senti obrigada a começar o texto com uma explicação de por que me considero bissexual. Para este fim, ofereci justificativas tanto pessoais quanto políticas. A explicação pessoal diz respeito ao fato de que, embora eu me envolva sexualmente tanto com pessoas que se identificam como homens ou mulheres, costumo sentir mais atração por mulheres, e talvez por essa razão me envolver sexualmente com uma mulher seja tão diferente pra mim em um nível visceral. Por essa razão, classificações como pansexual e omnisexual (que implicam em atração por todos) não ressoam pessoalmente em mim, porque eles parecem apagar uma diferença que eu experiencio. Embora essa ainda seja uma descrição precisa de como eu sinto a atração sexual, agora percebo que esse comentário é um tanto supérfluo. Afinal, todos nós, pessoas BMNOPPQ experimentamos nossas sexualidades de alguma forma diferente, e se cada um de nós tivesse uma única palavra para descrever precisamente nossas experiências internas de atração, isso não necessariamente nos ajudaria a desafiar o monossexismo e a invisibilidade bi. Então, se eu estivesse escrevendo aquele ensaio hoje, provavelmente teria deixado esse pedacinho pessoal de fora. 

Não vale de nada o fato de que (talvez sem novidade nenhuma) algumas pessoas tomaram esse comentário pessoal como evidência de que eu devo sustentar uma visão de gênero essencialista e rigidamente binarista, ainda que anteriormente no ensaio eu tenha enfatizado que há muita variação entre, e em sobreposição a, corpos femininos e masculinos (isso inclui a existência de pessoas intersexo, e pessoas trans que transicionam fisicamente). Em Whipping Girl (especificamente nas páginas 102-106), defendi o argumento de que uma pessoa pode reconhecer diferenças entre corpos femininos e masculinos sem necessariamente se envolver em essencialismo ou binarismo, então não vou me preocupar em debater isso novamente aqui. É suficiente dizer que, se simplesmente reconhecer as diferenças entre corpos femininos e masculinos equivale a essencialismo e binarismo, então isso significa que *todas* as pessoas heterossexuais e homossexuais são essencialistas e binaristas, com base no fato de que escolhemos ser um sexo em vez de outro. Mais uma vez, chamar a experiência em diferenças sexuais de uma pessoa bissexual de “essencialista” e “binarista”, sem levar em conta a experiência em diferenças sexuais entre pessoas gays, lésbicas e trans, só pode ser visto como monossexista.

A explicação política que dei sobre por que eu escolho a classificação como bissexual vem do fato de que o monossexismo na sociedade invisibiliza a bissexualidade, e garante que possamos ser vistos apenas em um de dois modos, ou seja, como homossexual ou heterossexual:

...o “bi” em bissexual não se refere apenas aos tipos de pessoas com quem me envolvo sexualmente, mas ao fato de que ambos os mundos queer e hetero me veem de dois modos bem diferentes dependendo de quem venha a ser meu parceiro em algum momento.

Admito que esse é um modo relativamente novo de encarar a palavra bissexual, mas é um modo que eu pessoalmente gosto e é consistente com o assunto de desafiar o monossexismo, a invisibilidade bi e o binário hetero/homo.

Aqui está outra possível interpretação da palavra bissexual: o prefixo “bi” pode significar “dois”, mas também pode significar “duas vezes” (e.g., como em bimestral). Então, enquanto pessoas monossexuais limitam seus possíveis parceiros a membros de apenas um sexo, pessoas bissexuais/BMNOPPQ desafiam o binário hetero/homo por não limitar nossa atração dessa forma, e somos assim abertos a mais ou menos o dobro do número de parceiros potenciais. Meu argumento principal aqui é que o prefixo “bi” tem mais de um significado, e pode ter mais de um referente. Então afirmar que pessoas que usam o termo bissexual devem estar sugerindo uma visão binária rígida de gênero, ou negando a existência de pessoas de gênero variante, é tão presunçoso quanto assumir que pessoas que usam o termo “bicoastal” estejam afirmando que um continente só pode ter duas costas, ou que eles estão de alguma forma negando a existência de todas as regiões interiores e sem litoral do continente.

A verdade é que há muitas maneiras diferentes de interpretar a palavra bissexual (ou outros rótulos sexuais). A acusação de que bissexual-reforça-o-binário é uma tentativa de determinar bissexual em um único significado, um que é uma afronta ao modo como muitas pessoas que se identificam como bissexuais usam o termo. Como analogia, e se pessoas cis de repente começassem a afirmar que não gostam do termo “transgênero” porque (nas suas cabeças) ele parece implicar que todas as pessoas deveriam modificar seu gênero? (Na verdade, já ouvi alguém fazer essa afirmação bizarra uma vez) Como nós, pessoas transgêneras, reagiríamos a essa acusação? Pessoalmente, eu responderia dizendo que transgênero é *nossa* palavra: é sobre a experiência de pessoas que se identificam como transgêneras com gênero e opressão baseada em gênero, e não faz nenhuma afirmação sobre o que outras pessoas são, ou como seus gêneros deveriam ser. Similarmente, minha resposta à acusação de que bissexual-reforça-o-binário é que bissexual é *nossa* palavra (nesse caso, pessoas que se identificam como bissexuais): é sobre nossas experiências com sexualidade e opressão baseada em sexualidade, e não faz nenhuma afirmação sobre o que outras pessoas são, ou sobre seus gêneros e sexualidades.

Mas olhando pra trás no meu ensaio sobre “reforço”, meu maior arrependimento é ter falhado em mencionar explicitamente o que é talvez a razão política mais importante pela qual eu me considero bissexual. Isto é, a palavra bissexual tem um longo histórico, e foi a palavra que os ativistas BMNOPPQ originais adotaram muitas décadas atrás quando lutaram por visibilidade e inclusão dentro (e além) das comunidades lésbica, gay e queer. Esse ativismo estimulou a criação de termos agora comuns como “bifobia” e “invisibilidade bi”, que têm desempenhado um papel crucial em desafiar o monossexismo da sociedade desde o princípio. Finalmente, e talvez mais importante, a palavra bissexual é familiar para a maioria das pessoas, tanto no meio dominante hetero quanto dentro das comunidades LGBTQIA+. Ter um termo guarda-chuva é criticamente importante dado que uns dos maiores desafios que pessoas BMNOPPQ enfrentam são a invisibilidade e o apagamento social.

Eu aprecio a intenção por trás de classificações alternativas como pansexual, omnisexual, polisexual e multisexual, e respeito o direito de pessoas BMNOPPQ escolherem qualquer uma dessas (ou outras) classificações no lugar de bissexual. Mas do ponto de vista do ativismo, a noção de que deveríamos abandonar completamente a palavra bissexual em favor de algum rótulo alternativo que não seja familiar para a maioria das pessoas não parece ser um movimento político sensato. De fato, tal movimento tornaria muito mais difícil para nós sair do armário e ganhar visibilidade em nossas comunidades, e teríamos que começar do zero com nova terminologia para o ativismo (panfobia? poli-invisibilidade?) para descrever como somos marginalizados.

De forma semelhante, respeito o direito de pessoas BMNOPPQ de escolher se identificar como queer no lugar de bissexual. (Só pra registrar, me identifico como bissexual e queer) No entanto, queer é um termo guarda-chuva muito mais amplo e que se destina a incluir todas as pessoas LGBTQIA+, e como tal não parece ser a melhor posição de onde desafiar monossexismo e invisibilidade bi.

Agora, é claro que a linguagem está evoluindo constantemente. E se essa fuga em massa da palavra bissexual em direção a classificações de identidade alternativas foi simplesmente parte de uma progressão natural - assim como as historicamente recentes mudanças do termo “homossexual” para “gay”, ou de “lésbica” para “dyke” - então eu não teria problema nenhum com isso. No entanto, me parece que a força primária por trás dessas escolhas de rótulos alternativos não está vindo da comunidade BMNOPPQ em si, mas de pressão externa de outros subgrupos queer. Como eu já discuti uma vez, sempre houve pressão nas pessoas BMNOPPQ para esconder ou subordinar nossas identidades para nos encaixarmos nas comunidades gay, lésbica e queer existentes. Mas atualmente, há uma pressão adicional colocada em nós por vozes transgênero que insistem que devemos parar de usar o termo bissexual por ele supostamente “reforçar o binário de gênero”. 

Muitas pessoas hoje em dia (transgêneras e BMNOPPQ) parecem estar comprando essa alegação do “reforço”, que essencialmente acusa pessoas que se identificam como bissexuais (como eu) de propagar cissexismo/transfobia. E ainda assim, praticamente ninguém está perguntando qual deveria ser a questão bastante óbvia: esse argumento não é bem unilateral? Não deveríamos também estar considerando que efeitos a rejeição à classificação “bissexual” teria para pessoas BMNOPPQ e nossos esforços em desafiar o monossexismo e a invsisibilidade queer? Shiri Einsner, ativista bissexual e Genderqueer, foi a primeira pessoa que vi fazer esse argumento crucial (no post que mencionei anteriormente):

“...uma discussão que se concentra somente em torno da bissexualidade em relação à política transgênera representa apagamento bissexual estrutural, pois prioriza a política transgênero sobre a política bissexual em uma discussão sobre a identidade bissexual.[grifo de Eisner]


Quando colocado dessa forma, torna-se claro quão problemático é para pessoas transgêneras afirmar que bissexuais deveriam abandonar uma identidade que pessoas BMNOPPQ têm usado por décadas simplesmente porque ela é supostamente incompatível com a política transgênera. Por que parar aí? Já que estamos nisso, por que não dizemos às lésbicas que elas deveriam parar de usar essa palavra? Afinal, poucas ideologias jorraram tanto cissexismo ao longo dos anos quanto o feminismo lésbico. Pensando nisso, e sobre pessoas que descrevem a si mesmas como “mulher” ou “homem” - esses rótulos certamente reforçam o binário! Não deveríamos estar apontando todos que usam essas classificações? E pessoas trans que se identificam como “MTF” e “FTM”- acrônimos que implicam que há dois sexos. Elas não reforçam o binário?

E se nos colocarmos no lugar do outro? Feministas cisgênero discutem há muito tempo que gênero é uma invenção patriarcal cujo objetivo é oprimir mulheres. Então, e se feministas cisgêneros usassem uma tática similar e começassem a acusar pessoas transgêneras de “reforçar o patriarcado” porque a palavra “transgênero” tem a palavra “gênero” nela? Esse argumento não é estruturalmente idêntico à afirmação de que bissexual-reforça-o-binário? Se feministas cisgênero afirmassem isso, como reagiríamos? Deixaríamos de nos chamar de transgêneros (ou genderqueer, ou gênero variante)? O que isso significaria para nós enquanto grupo marginalizado que apenas recentemente ganhou visibilidade e um pouquinho de aceitação na nossa sociedade? O que aconteceria a todas as políticas que agora incluem pessoas “transgêneras”, ou que previnem discriminação baseada em “identidade de gênero” (sim, esse termo também tem aquela incômoda palavra “gênero”)? Estaríamos nós, enquanto comunidade transgênera, realmente dispostos a desistir de tudo isso para acomodar uma política cisgênera?

Achei que não. Então como podemos, como comunidade transgênera, esperar que pessoas bissexuais/BMNOPPQ desistam do mesmo para acomodar nossa política?

Existe mais de um binário!

Nada demonstra mais o fato de que a afirmação de que bissexual-reforça-o-binário prioriza políticas transgêneras do que a suposição de que o “bi” em bissexual automaticamente se refere ao “binário de gênero”. Essa é uma declaração ousada dado que pessoas BMNOPPQ têm que lidar com a sua própria orientação sexual binária, e que ativistas bissexuais discutem há muito tempo que ser “bi” subverte o binário hetero/homo. Então como é que um debate sobre “bissexual” (um rótulo de orientação sexual) pode acabar centrado somente no binário de gênero, ignorando completamente a orientação sexual binária?

Esse me parece ser um desenvolvimento relativamente recente. Quando o ativismo bissexual e transgênero estavam ganhando seu primeiro momento nos anos 1990, era bem comum para ativistas de ambos os campos apontar os paralelos entre o modo como as pessoas transgênero desafiavam o binário masculino/feminino e como bissexuais desafiavam o binário hetero/homo. Houve até um antologia inteira (entitulada Bisexuality and Transgenderism: InterSEXions of the Others) concentrada nesse tema. Por volta da época em que transicionei (em 2001), pessoas trans se referiam ao “binário masculino/feminino” (que parece reconhecer a possibilidade que há outros binários por aí) tão frequentemente quanto mencionavam o “binário de gênero”.

Mas ao longo do tempo, essa perspectiva mudou. Hoje em dia, muitas pessoas transgêneras parecem se referir a uma versão caps lock do BINÁRIO DE GÊNERO, como se ele fosse o único binário de onde vem toda a opressão sexual e de gênero. Essa interpretação me lembra o modo como muitas feministas lésbicas cisgêneras falam sobre O PATRIARCADO, usando-o como a lente única através da qual são vistos todos os aspectos de gênero e sexualidade. Ver todas as formas de sexismo em termos dO PATRIARCADO (i.e., homens são opressores, mulheres são oprimidas, fim de história) é precisamente o que levou muitas feministas lésbicas cisgêneras a interpretar erroneamente homens trans como “mulheres” traidoras que transicionam para obter privilégio masculino, e mulheres trans como “homens” privilegiados que tentam apropriar o status oprimido das mulheres e/ou infiltrar espaços exclusivos para mulheres.

Quando vemos o mundo através de uma única lente, somos obrigados a negligenciar muitas coisas. Entender todos os aspectos de gênero e sexualidade através das lentes dO PATRIARCADO tem levado muitas feministas lésbicas cisgêneras a condenar não apenas pessoas transgêneras, mas expressão de gênero femininas e masculinas, relações butch/femme, BDSM, pornografia, profissionais do sexo, sex toys de formato fálico, e assim em diante. De modo similar, entender toda opressão sexual e de gênero em termos de BINÁRIO DE GÊNERO pode parecer fazer sentido para algumas pessoas transgêneras, mas negligencia (e portanto apaga) muitas outras hierarquias sexuais e de gênero, como o masculinismo (i.e., a suposição de que a expressão de gênero masculina é mais legítima do que a expressão feminina), trans-misoginia, subversivismo, assexofobia e, é claro, monossexismo.

Em outras palavras, se vamos ter uma conversa através das comunidades entre pessoas transgêneras e bissexuais/BMNOPPQ, então temos que falar sobre o binário masculino/feminino e cissexismo, assim como o binário hetero/homo e monossexismo. Se não estamos levando em conta as questões de ambas as comunidades, então não estamos conversando, estamos meramente nos envolvendo em uma calúnia unilateral.

Uma nota final nesse argumento: enquanto eu escrevia esse texto, me ocorreu como é estranho o fato de que o debate sobre bissexual-reforçar-o-binário, que prioriza políticas transgêneras sobre políticas bissexuais, tem proliferado com sucesso por vários anos, e tem persuadido muitas pessoas BMNOPPQ a rejeitar a palavra bissexual sem muita resistência. Acho alarmante que, ainda que a palavra monossexismo tenha sido cunhada e usada por ativistas bissexuais pelo menos uma década antes da palavra cissexismo ter sido usada por ativistas trans, atualmente eu me encontre tendo que explicar o que esta primeira significa mais do que a última. Em outras palavras, embora o movimento bissexual tenha ganhado um impulso inicial antes do movimento transgênero (o que é o motivo pelo qual o B precede o T na maioria dos acrônimos queer), o movimento transgênero parece ter ultrapassado o movimento bissexual, ao menos no contexto das comunidades queer. Para ser clara, não estou de forma alguma insinuando que pessoas BMNOPPQ são “mais oprimidas” do que pessoas transgêneras (deus sabe que não tem nada que eu odeie mais do que brincar de “Olimpíadas da opressão”). Mas penso que pessoas transgêneras têm se condensado mais como uma comunidade do que as pessoas BMNOPPQ. E essa falta de coesão entre pessoas BMNOPPQ (combinada com a perspectiva limitada do BINÁRIO DE GÊNERO) certamente tem contribuído para a natureza unilateral do debate sobre bissexual-reforçar-o-binário.

Uma observação final

Finalmente, devemos enfatizar que esse debate sobre bissexual-reforçar-o-binário não está se manifestando uniformemente ao longo de todas as comunidades LGBTQIA+. Ele parece estar amplamente ausente nas comunidades de homens gays, e entre pessoas transgêneras e bissexuais que passam a maior parte do tempo em comunidades hetero em vez de queer. Até onde eu sei, esse debate ocorre principalmente dentro de comunidades de mulheres queer e entre pessoas trans que também habitam esses espaços. E eu penso que essa especificidade oferece algum esclarecimento do por que de esse debate ter surgido e ganhado força nesse tempo e espaço em particular. 

Essa conexão me ocorreu depois de, em algumas ocasiões separadas, ter ouvido homens trans afirmarem que, em sua opinião, bissexuais (como um grupo) tendem a ser mais transfóbicos do que lésbicas. Sinceramente, isso me surpreendeu. Historicamente, ativistas transgêneros e bissexuais muitas vezes se viram do mesmo lado ao desafiar a exclusão dentro das comunidades e organizações gays e lésbicas. E pela minha própria experiência, descobri que pessoas que se identificam como bissexuais na minha comunidade queer costumam me apoiar bem mais (como mulher trans) do que pessoas exclusivamente gays ou lésbicas. E, embora lésbicas cisgêneras geralmente não vejam mulheres trans como eu como parceiras românticas ou sexuais legítimas, mulheres bissexuais cisgêneras frequentemente veem. Como testemunho disso, *todas* as minhas parceiras sexuais e românticas queer eram bissexuais ou gênero variante de alguma forma. Embora eu seja definitivamente aberta à ideia de ter uma parceira ou amante lésbica cisgênera, nenhuma delas jamais expressou esse interesse por mim. Essa experiência não é específica para mim - é difundida o bastante para que mulheres trans frequentemente se refiram a ela como “teto de algodão¹”.

Evidentemente, as coisas são diferentes para pessoas trans e para pessoas que estão dentro do espectro trans masculino. Eles se sentem relativamente aceitos (como indivíudos e possíveis amantes/parceiros) por lésbicas cisgêneras hoje em dia. Então faz sentido que, do seu ponto de vista, bissexuais pareçam ser mais transfóbicas do que lésbicas (de fato, Eisner traz um argumento parecido). Em constraste a isso, pela minha perspectiva como mulher trans, acho que lésbicas cisgêneras tendem a ser bem mais propensas a trans-misoginia do que mulheres bissexuais transgêneras. São generalizações, é claro, mas são responsáveis pelas perspectivas tão diferentes sobre esse assunto.

Ironicamente, embora o feminismo lésbico seja tipicamente considerado ultrapassado hoje em dia, sua premisa fundamental - que homens cisgêneros são opressores por natureza, e que mulheres que os tem como parceiros são traidoras da causa - ainda vive nas comunidades queer atuais. Em outro lugar, me referi a essa atitude como mentalidade FAAB. Por causa da mentalidade FAAB, mulheres trans são vistas com suspeitas porque somos vistas como sendo, “na verdade, homens cisgêneros”, e femmes são desconsideradas por lembrarem demais as mulheres heterossexuais. E, é claro, mulheres bissexuais são suspeitas porque algumas de nós escolhemos homens cisgêneros como parceiros.

Acredito que essa mentalidade FAAB está em ação nos bastidores quando homens trans/pessoas masculinas enfatizam como são diferentes dos homens cisgêneros para ser aceitos nos espaços de mulheres queer, e quando mulheres queer que têm homens trans como parceiros (e, portanto, se encontram dentro do guarda-chuva BMNOPPQ) não medem esforços para evitar se identificarem como bissexuais. Embora eu respeite o direito de qualquer pessoa de escolher pansexual, polisexual, queer, etc no lugar de bissexual, às vezes sinto que essas classificações alternativas funcionam como códigos em comunidades de mulheres queer, como se dissessem “me envolve sexualmente com todos *exceto* homens cis”. Embora as pessoas certamente sejam livres para escolher não se envolver com homens cis, me perturba o binário que parece se desenvolver aqui, em que mulheres pansexuais/polisexuais/etc são supostamente subversivas e queer porque se recusam a dormir com homens cisgênero, ao passo que mulheres bissexuais são supostamente conservadoras e têm a mente fechada porque às vezes têm homens cisgêneros como parceiros. E me parece que a alegoria de que bissexual-reforça-o-binário exacerba esse binário, o que provavelmente é o por que dessa acusação ter se tornado tão predominante em comunidades de mulheres queer.

Embora seja verdade que algumas pessoas bissexuais são cissexistas, também é verdade que muitas pessoas lésbicas e trans são monossexistas. Como uma mulher trans bissexual que é muito ativa nas comunidades de mulheres queer, eu gostaria que todos nós deixássemos de nos colocar uns contra os outros e, no lugar disso, trabalhássemos juntos para desafiar todos os binários e todas as formas de sexismo.

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