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sábado, 30 de agosto de 2014

docência (ou o que estamos fazendo de errado)

Fun fact: eu não resolvi cursar Letras porque queria ensinar. Eu queria Tradução, mas Licenciatura era o que tinha pra hoje, então beleza. Ensinar até o começo desse ano era uma curiosidade, algo que eu achava que gostaria de fazer em outra vida, porque nessa não seria capaz de me articular o suficiente, de saber o suficiente, de ter o domínio suficiente... Enfim. Mas daí me peguei me interessando mais e mais por educação e acabei começando a dar aula também e, olha só, nem é impossível. 

Mas não era sobre isso que eu queria falar, isso é só background. O que eu queria falar mesmo era sobre a responsabilidade que está nas mãos do docente. Faz muito pouco tempo que eu dou aula (só alguns meses), então isso é mais sobre a minha experiência enquanto aluno do que como professor, mas vou começar com um exemplo da segunda situação.

Ensino Inglês para crianças de quatro a sete anos - uma verdadeira aventura - e não é difícil notar a diferença que apenas alguns anos fazem pra elas, não apenas em relação ao seu próprio desenvolvimento, mas em como elas começam a internalizar as regras do mundo ao redor. As meninas de quatro anos da minha primeira turma correm, pulam, se sujam e dificilmente se importam se a cor que elas gostam é azul ou rosa; em apenas três anos muitas delas (senão todas) vão aprender que todas essas coisas não são coisas de menina, que quando um menino implica com elas isso é natural, que não adianta de nada reclamar do que incomoda. Quanto mais próximas da puberdade, mais restrições elas vão aprender e internalizar. It's all downhill from there.

Outro dia, na turma dos de seis/sete anos, estávamos fazendo uma brincadeira no quadro. Uma criança tinha que ir até lá e desenhar um brinquedo, e as outras iam ter que adivinhar qual era antes de ela terminar o desenho. Um dos meninos desenhou um videogame, e uma das meninas disse "eu sabia que ele ia desenhar esse, porque é brinquedo de menino", ao que eu respondi que menina brinca de videogame também, e listei algumas outras coisas que supostamente seriam "de menino" mas que menina também brinca. Outra aluna então puxou a barra da minha blusa e sussurrou, morta de feliz, "teacher, meu brinquedo preferido é videogame. e carrinho e jogar bola."

Parece tão simples e, na verdade, é tão simples. Professora não é só uma pessoa que fica ali na frente passando informação pra uma turma de pessoas sentadinha tomando notas; ela é também a pessoa em quem você busca afirmação, uma figura senão de autoridade, de conhecimento, alguém que supostamente está ali pra te ajudar a aprender e confirmar se você está no lugar certo. Essa menina que eu mencionei vive ouvindo que ela não está fazendo as coisas do jeito certo, e só vai ouvir mais e mais e, guess what, vai acabar acreditando nisso. 

O que eu percebo em sala de aula, agora principalmente do lado de lá, do lado de quem assiste a aula, é que as pessoas subestimam demais o poder que uma pessoa em posição de autoridade tem, principalmente quando ela se cala. 

Semestre passado, um professor comentou a mudança no facebook pra permitir a mudança para  pronomes neutros, o que prontamente se tornou piada no momento, com pessoas dizendo que agora dava pra mudar o gênero pra "abacaxi" e o caralho a quatro. Em uma sala de aproximadamente trinta pessoas, quem não estava rindo estava calado, e eu ali sem fazer ideia de quem, além de mim, poderia estar possivelmente ofendide com aquilo. Deixa eu te dar uma dica de porque as pessoas nem sempre levantam a voz pra se manifestar quando alguma coisa as ofende: nós temos medo. Nós não temos mais energia pra isso depois de saber exatamente qual é a reação das outras pessoas. Nós não conseguimos. Motivos não faltam. Tem uma sala inteira ao meu redor rindo de mim, em um dia particularmente ruim, eu vou lá botar o meu na reta quando sei que não adianta nada? Thanks, but no.

Ainda naquele semestre (exemplos não me faltam), mencionei uma pesquisa que tinha visto outro dia. A pesquisa era sobre como os homens entrevistados respondiam que nunca estuprariam ou estupraram ninguém, mas que quando a pergunta era refraseada para descrever a situação sem usar a palavra estupro a resposta mudava completamente (por exemplo, "Você insistiria em sexo com uma mulher que estivesse bêbada?" etc. A resposta então mudava para sim). Comentei sobre o problema que é o fato de que as pessoas simplesmente não saberem o que é estupro; que ainda acham que só pode acontecer num beco escuro à noite quando algum desconhecido ataca uma mulher.

Mais ou menos metade daquela turma (senão mais) era composta por mulheres, mas quem dominou a discussão daí em diante foram os homens, falando sobre como a metodologia não era correta porque ela induzia a resposta que queria, que se a pessoa não sabe que é estupro então não é estupro (toma aqui uma estrelinha pelo seu raciocínio genial, thanks for nothing), e em menos de cinco minutos toda a discussão girava em torno do homem, que na real é uma boa pessoa, só estava sendo induzido a responder pra poder ser contado como estuprador. Nenhuma palavra sobre ensinar as pessoas sobre consentimento foi dita novamente naquele dia. Muitas palavras foram ditas sobre como mulheres podem provocar o estupro. 

Quê que o cu tem a ver com as calças? Tem um terceiro elemento nesses cenários: o bendito professor. Essa é outra coisa que noto não apenas nesses professores em específico, mas em praticamente todos os que já tive: eles ficam na deles. O papel da pessoa que ensina não é orientar só quando você passou dos vinte e tá precisando escrever artigo e monografia, mas sim como parte integrante do ser professor. Quando eu estou assistindo a uma aula, eu sou igual a todo mundo. O que eu falo é respeitado pelos meus colegas na mesma medida em que respeitariam a fala de qualquer outra pessoa na minha mesma posição; o professor não está nessa posição. 

Eu posso, quando estou do lado de cá, de quem ensina, não estar mandando em ninguém e posso estar no mesmo nível que todo mundo, agindo mais como alguém que media a conversa do que como autoridade, mas isso não muda o fato de que é pra mim que as pessoas que eu estou ensinando vão se voltar. Afinal, não tô ali pra orientar? Pra mediar? É muito legal deixar as pessoas discutirem entre si e encontrarem um consenso e tudo o mais, mas no momento em que tudo isso sai de foco e eu apenas me calo, eu contribuo pra uma desinformação e silenciamento que não deveria estar ali, e eu não estou mais cumprindo o meu papel.

Lembra do começo do post, da aula de Inglês das crianças? Uma coisa tão simples quanto não dizer que não tem nada de errado em menina brincar de videogame teria sido o suficiente pra tornar aquele momento hostil não somente pra menina que gosta de jogar, mas pra todos os outros alunos que apenas recebem a confirmação de uma suposta regra que é atirada neles por todos os lados. Minha aula, aquela horinha duas vezes por semana, muito provavelmente não vai ser o suficiente pra que essas internalizações sejam quebradas. Mas eu sou uma pessoa só. Existe tanta gente ensinando nesse país, a gente pode fazer melhor que isso.

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