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segunda-feira, 11 de janeiro de 2016

[Tradução] Abolição do gênero e colonização

Esta é uma tradução do texto Gender Abolition as Colonisation, de Lola Phoenix, originalmente postado aqui. Traduzi a versão do medium por ser a mais atualizada.

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Quando digo que não me identifico como mulher, me vejo em um monte de debates com pessoas que acreditam na abolição do gênero. Recentemente escrevi uma explicação sobre por que defender a abolição do gênero é uma forma de colonização.

Gênero enquanto epistemologia


Você provavelmente já ouviu falar na filosofia de que gênero é uma construção social. O que isso significa é que, embora possa haver marcadores biológicos e corporais daquilo a que nos referimos como “gênero” (ou “sexo” que é uma construção social tanto quanto “gênero”), o conceito de gênero é algo construído pela nossa cultura. Isso não significa que ele não existe, que é como algumas pessoas entendem a conotação de “construção social”, mas sim que é a cultura que o define.
Mas eu quero ir além disso. Gênero não é apenas uma construção social, mas uma epistemologia. O que é uma epistemologia? Simplesmente conhecimento adquirido. Isso significa que, embora 2 + 2 = 4, o fato de que:
  • sabemos como somar números
  • sabemos o que são números
  • sabemos o que essas figuras representam
  • temos um processo pelo qual viemos a saber como somar esses números
  • criamos símbolos para representá-los e
  • criamos um processo para representar tudo isso
Tudo isso é uma epistemologia. É o processo de saber. Gênero não é diferente.
Sinto que fazer uma distinção entre uma epistemologia e uma construção social é importante, especialmente quando estamos abordando gênero através de uma perspectiva interseccional.
Gênero não é apenas performance, é um processo pelo qual conhecemos a nós mesmos e a outros. É algo que demos importância, categorizamos e desenvolvemos durante séculos. O problema com a “construção social” é que ela traz o retrato de uma situação estagnada. Nós não apenas construímos o gênero e então está tudo certo. Não é como um prédio que é concluído e todos vamos viver nele. Mas é algo que fazemos constantemente, que mudamos, modelamos e damos forma, e é algo que temos feito por séculos.
E se temos feito isso por séculos, isso significa que todo mundo tem feito isso da sua própria maneira por séculos. Eu odiaria soar como se estivesse dizendo “é assim que as coisas são, não faz sentido mudar!”, porque não é nada disso que estou querendo dizer. Se gênero é uma construção social, um prédio, uma coisa inerte que construímos e que pode ser demolida, abolição faz sentido.
Mas gênero não é uma força estagnada. Não é algo que podemos simplesmente demolir. O meu problema com a abolição de gênero é que não sinto que seja uma abordagem realista. Embora eu não esteja sugerindo que gênero não possa ser extraordinariamente opressivo e terrível, abolir tudo relacionado a ele por causa das suas partes opressivas me soa não apenas como jogar o bebê fora junto com a água do banho, mas como tentar peneirar um bebê feito de água pra fora da água do banho antes de jogá-la fora, o que me leva a minha próxima questão. Como definimos gênero?

Definindo “Gênero”

Gênero é uma epistemologia, e é uma epistemologia que é construída através da perspectiva de outras interseções. A maioria dos diálogos que tenho visto que sugerem a abolição do gênero geralmente vem de uma perspectiva branca, que tem a sua própria percepção e conceito do que envolve “gênero”. O problema quando você considera isso fora de uma perspectiva branca é que não apenas tudo se torna muito mais complexo, mas que o processo de aplicar epistemologias de gênero brancas a outras epistemologias de gênero se torna um processo de colonização.
Por exemplo, muitas pessoas que estão familiarizadas com a comunidade trans podem ter ouvido falar de hijras, um conceito de gênero que existe no sul da Ásia. Muitas pessoas brancas tem chamado hijras de “trans” ou rotulados essas pessoas com termos trans. Independentemente da intenção, pegar a epistemologia “trans” e aplicar nas pessoas hijras pode ser visto como um ato opressivo ou colonizador. Hijras são hijras. O nome é esse. A não ser que uma pessoa hijra se identifique especificamente como trangênera ou trans, aplicar nosso próprio conceito de gênero e sexualidade construído dentro de culturas supremacistas brancas em pessoas fora da nossa estrutura epistemológica é redefini-las com nossos próprios termos para benefício próprio.

deo que explica o conceito de dois-espíritos e suas complexidades.
Outra ocasião em que isso ocorre e em relação ao conceito indígena de dois-espíritos de nativos americanos/canadenses, que é por si só um termo guarda-chuva para múltiplos conceitos tribais de terceiro gênero ou de papéis de gênero mistos. A definição não apenas difere de tribo pra tribo, como em muitos casos aplicar o conceito branco de gênero para pessoas dois-espíritos, novamente, se torna um ato de opressão e colonização. Especialmente quando, sem qualquer antecedente nativo ou indígena, pessoas brancas adotam a identificação geral de “dois-espíritos”.
Essa experiência de gênero dentro de cultura também se aplica:

Apesar de não me esforçar tanto para parecer andrógina ou masculina (a não ser por razões específicas, como drag) e apesar do decote e das curvas, às vezes sou lida como homem. Em Bangladesh (onde vive minha família), sou entendida como homem antes de qualquer coisa quando não estou vestindo um salwhar khameez (que é basicamente o que toda mulher jovem em Bangladesh veste) - então eles entendem que sou estrangeira e definem meu gênero como Não É Daqui. Um efeito parecido acontece na Malásia, ainda que em menor grau, e às vezes o mesmo acontece no mundo ocidental. Eu sinto que muitas pessoas veem minha etnia primeiro, assim como meu estado constante de Estrangeira, e ficam muito confusas com a ideia de que eu possa ter um gênero. Ora, minha raça foi uma questão tão grande enquanto eu crescia que eu nunca contemplei nenhuma outra parte do meu ser até sair da escola!
...O que conta como “femme” no mundo queer ocidental é basicamente o que as mulheres da minha família são por padrão - e ainda assim femme é considerada uma expressão consciente de gênero. Minhas expectativas culturais de “masculinidade” (que pode ou não ser sinônimo de “butch”) se encaixam melhor com os conceitos ocidentais de metrosexualidade, que eu vejo ser entendida como masculinidade efeminada (e.g. meu pai é Muito Viril, e parte de ser Muito Viril é cuidar da aparência e vestir roupas bem ajustadas) - Thoughts About My Gender
Nessa situação, não apenas estamos empurrando um conceito epistemológico branco de “gênero” em outras culturas, mas se formos adiante com a abolição, como podemos esperar que as pessoas para quem o gênero interage tão estreitamente com raça, religião, experiência cultural, divorciem ou mesmo reconheçam os pedaços do gênero que são independentes de sua cultura para destruí-los? Ou, se gênero é uma epistemologia,  raça e outros fatores intersecionais são partes do gênero de tal maneira que não podemos simplesmente destruí-lo sozinho? E se é isso que tentamos fazer, chegamos no próximo grande problema: que a abolição de gênero pode ser, especialmente vindo de uma base feminista branca, uma força colonizadora.  

Quando a abolição é colonização

Isso me lembra o livro Sex at Dawn, que discute como a psicologia evolucionária e as percepções dos dias modernos influenciaram a epistemologia eurocêntrica de sexualidade. Ele faz referência ao exemplo de antropologistas examinando uma prática dentro de uma cultura e a rotulando como casamento monogâmico, quando “casamento” naquela cultura apenas significava que duas pessoas dormiam na mesma tenda.
Fica claro que nosso entendimento epistemológico de “casamento” e “amor” existe de uma forma dentro da cultura supremacista branca e mesmo quando aplicando uma perspectiva a essa cultura, podemos estar sendo assustadoramente tendenciosos e errados. O modo como definimos essas palavras e conceitos é um processo. Se aplicar nossa própria epistemologia moderna em comportamentos anteriores resulta em desentendimentos, imagine as dificuldades em definir e aplicar gênero em relação a todas as culturas na tentativa de destruí-lo.
Muitas vezes antropologistas e outras pessoas que tentam classificar e dar nomes a outras culturas criaram sistemas problemáticos que são opressivos. De fato, você pode ver isso no conceito mencionado anteriormente, “dois-espíritos”. “Dois-espíritos” é um termo que se tornou popular onde anteriormente o termo “berdache” era usado, baseado no francês bard ache, que significa garoto de programa ou sodomita e se origina de uma palavra árabe que significa “cativo, capturado”.
Embora aplicar o termo “trans” a pessoas “dois-espíritos” possa de fato se menos inicialmente ofensivo que “berdache”, ainda assim é efeito da aplicação de um entendimento branco em um conceito que pode não existir. Pessoas “dois-espíritos” não são apenas dois espíritos com gênero, pois o termo pode se referir a uma  variedade de conceitos que simplesmente não são facilmente traduzidos para conceitos brancos.
Anos atrás, quando eu estava estudando antropologia na universidade, uma das minhas professoras mostrou uma fotografia de um chifre de veado com 28 marcações. “Isso,” ela disse, “é o que alegam ser a primeira tentativa de calendário do homem.” Todos nós olhamos para o osso, admirados. “Me digam,” ela continuou, “que homem precisa saber quando 28 dias se passaram? Eu suspeito que essa é a primeira tentativa de calendário da mulher.”  – Sandi Toksvig
A citação de Sandi Toksvig sugere que sexismo prejudica o entendimento epistemológico eurocêntrico da história. Se somos incapazes de dar às mulheres crédito onde elas merecem, como esperamos ser capazes de aplicar um entendimento em outros - e seria esse um entendimento correto?
Não me surpreenderia descobrir que existe por aí uma sociedade que não tem palavras para “gênero”, onde o conceito de “gênero” não existe. Embora possa haver comportamentos que certas pessoas fazem ou não fazem aos quais são atribuídos gênero dentro de uma estrutura epistemológica, se uma cultura não tem o conceito dentro dela mesma, então como exatamente abolimos o gênero?
Simplesmente colocamos nossa epistemologia eurocêntrica de gênero na cultura e abolimos o que quer que se encaixe ou não na nossa definição? E se, apesar de não ter um conceito de gênero, a cultura ainda for opressiva em relação a uma facção da população que tem uma diferença biológica que julgaríamos como uma característica sexual (e.g. por exemplo, e se essa cultura visse um maxilar quadrado como um sinal de poder e homens por acaso fossem as pessoas de maxilar quadrado no poder)? Temos que reenquadrar isso sob gênero? Como abordamos isso? Tudo se torna tão incrivelmente complicado.
O problema da abolição de gênero é que não apenas temos que definí-lo, aplicar nossa definição em outras culturas, exigir que removam gênero da sua própria experiência racial, cultural ou espiritual, como também assumir que a abolição do conceito de gênero vai resultar em igualdade ou em ausência de discriminação. Fazendo isso, de uma perspectiva branca, efetivamente criamos um projeto colonizador em que estamos interferindo nas identidades, comportamentos e práticas dessas pessoas na tentativa de melhorar suas vidas.
Estou disposta a ouvir outro conceito de como podemos superar o gênero como uma força opressiva, redefini-lo, mudá-lo, ou transformar nosso entendimento epistemológico dele. Mas não consigo apoiar a abolição de gênero dentro de todas as epistemologias e estruturas. Nem tenho certeza se abolir o gênero dentro de uma epistemologia branca é possível, mas trabalhar no meu próprio entendimento e estrutura cultural parece ser uma abordagem melhor do que tentar abolir um conceito que não apenas sinto que as pessoas se identificam muito profundamente dentro da minha própria cultura, como também existe em tantas outras formas dentro e fora da cultura supremacista branca, ao ponto que tentar destrui-lo significa colonizar o mundo com o meu entendimento de gênero em primeiro lugar.
Espero que outras feministas que apoiam o abolicionismo de gênero considerem como essa abolição pode se tornar colonização e abordem esse ponto na sua crítica sobre gênero. Porque eu concordo de todo o coração que feminismo que não é interseccional não vale nada.

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