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sexta-feira, 20 de maio de 2016

os retrocessos e a luta nossa de cada dia

(a maior parte desse texto foi escrita uns dias depois da votação do impeachment pelos deputados. Infelizmente, ele ainda tá atual.)

É engraçado como o distanciamento entre as gerações acontece, mesmo num espaço de tempo tão pequeno. Nem faz tanto tempo assim que eu fui criança; quando os meus alunos de onze anos estavam nascendo eu ainda mal tinha entrado na adolescência. Ainda assim, acho que uma das maiores - senão a maior - dificuldade em se comunicar com uma criança, enquanto adulto, é simplesmente não se lembrar mais do que é ser criança. A gente é treinado pra ensinar, pra enxergar, de certa forma, a maneira com elas entendem as coisas, as etapas de desenvolvimento, o modo como uma criança muito nova não consegue entender uma abstração, por exemplo, mas nada disso realmente faz desaparecer a distância pura e simples de se passar de uma geração a outra.

Esses dias eu estava arrumando a sala depois de uma aula e em um dos papéis que estavam jogados no chão uma das crianças tinha escrito “vamo matar a dilma”. Volta e meia elas também fazem piada sobre a Dilma, sem dúvidas repetidas dos pais e outros adultos. O processo não é tão diferente quanto aquele que faz viado e outros xingamentos baseados em gênero/sexualidade serem tão frequentes na escola; elas ouvem em algum momento da vida, associam a coisas ruins, começam a usar como xingamento antes de sequer entenderem por que - ou se - acham errado. Até essa idade elas ainda nem têm muito claro ainda o motivo pelo qual acham que ser gay seria algo ruim; não foi construída ainda uma lógica em cima disso, tudo ainda faz parte da repetição, da associação que se faz de que ser homossexual seja algo intrinsecamente ruim.

Quando vi o papel, e também na primeira vez que presenciei o repertório mais pesado de xingamentos dos alunos mais velhos, tive meio que um momento de choque. Não é que eu não saiba o que uma criança fala - e elas falam muito, e muita coisa - mas é que acho que tem um delay entre o momento em que você vê/ouve algo e o momento em que você compreende que esse algo é fruto de um processo até pior do que o xingamento em si. O que me assusta não é o que as crianças falam, mas saber porque elas falam isso.

Eu assisti toda a votação do impeachment na Câmara, seis horas da minha vida que nunca terei de volta. Seis horas de horror. Eu ri muito durante a votação; aquele riso amargurado, último ato de um desesperado, ao qual acho que estamos todos bem acostumados a essa altura. Eu penso nos livros de História que as crianças que nascem hoje vão ler daqui a dez, quinze anos. Como é que explica esse circo? Como é que se explica que tinha gente na rua que segurava, sorrindo, felizão, cartazes pedindo a volta da ditadura? Como é que se explica a ironia disso?  

Eu tenho consciência de que aqui, mal tendo atingido ainda um quarto de século, eu não faço ideia do que tenha sido a ditadura. Não importa quantos livros, documentários e depoimentos eu veja, isso não vai me fazer conseguir mensurar o que, de fato, significou esse período. O que a gente consegue fazer, tendo nascido e vivido numa época em que ainda se consegue ir na rua pra protestar, é ter medo de uma realidade que não conhecemos. A democracia no Brasil é jovem, frágil, falha até. E dependendo do que aconteça daqui pra frente, talvez apenas um momento pra tomar fôlego.

O que me assusta de verdade não é tanto o fato de termos uma Câmara cheia de homens brancos fazendo apologia à ditadura, aos militares de 64, à tortura. O que me assusta de verdade é saber que eles não estão falando para o vazio; eles chegaram ali, muitos deles, pelo dinheiro sim, mas também porque tem muita, mas muita gente que bate palmas para o que dizem. Ficou impressa na minha memória a imagem dos panelaços, do jovem segurando o cartaz pela ditadura pra dar um jeito no Brasil. Aqui, do alto do meu distanciamento da geração que realmente viveu o período em que não tivemos democracia, dá um tilt no meu cérebro. É como o papel dizendo “vamo matar a dilma” escrito por uma criança de dez anos. Exceto que o adulto tem a capacidade de entender do que está falando; essa glorificação da ditadura, dele, dos deputados, é uma escolha consciente. É uma violência consciente.

Quando essa palhaçada começou eu pensava realmente nisso como uma palhaçada, como um punhado de gente que achou sua chance de chamar atenção num momento em que qualquer merda estava sendo alardeada como válida. Não é um punhado tão pequeno assim, mas que ainda assim se eleva mais pela atenção que recebe do que pelo poder da maioria em si. A maioria aqui não se trata de números, mas de poder. Eu penso nos filhos dessas pessoas. Eu penso em crianças de dez anos fazendo piada com coisas que elas literalmente não entendem, na bola de neve que é a naturalização disso tudo.

Temer tomou o poder há uma semana e todo dia, sem falta, eu só vejo as notícias pra ficar cada vez mais triste. Até mesmo (algumas d)as pessoas que queriam tanto o impeachment agora tão vendo a merda que isso deu. Eu sei que a gente tem que lutar, e nós vamos e estamos fazendo isso, mas é um retrocesso tão grande e em tão pouco tempo que a sensação, além do puro e simples medo, é de que esse puxa-puxa pra conquistar nossos direitos não vai acabar nunca.

Eu me lembro de um dia ter lido - ou ouvido, não lembro - alguém falar sobre como uma estratégia comum de invalidação do feminismo é apontar como as mulheres “são emotivas demais” quando falam sobre o assunto; como tudo acaba se tornando pessoal, em primeira pessoa, sem uma discussão “racional” e distanciada. Pra mim o feminismo é, por definição, algo muito pessoal. Não se trata somente de uma teoria, de um conceito abstrato que eu queira defender e do qual eu tenha certo distanciamento; é da minha vida mesmo que eu tô falando. É da dificuldade que passamos enquanto pessoas que sofrem opressão, seja sexual, de gênero, de raça, de classe… É a nossa vida em jogo aqui. A voz vai tremer, sim. Mas se a gente não luta por si mesmo, uma coisa é certa: ninguém mais vai.

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